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(Os resultados de Portugal na última edição do estudo Progress in International Reading Literacy Study (PIRLS) estão disponíveis aqui. Além disso, o impacto da pandemia na aprendizagem pode ser consultado aqui.)

Introdução

Décadas de investigação revelam uma relação sólida entre o desenvolvimento precoce da linguagem oral — isto é, do vocabulário e da compreensão auditiva —, o conhecimento de conteúdo (geralmente definido como o conhecimento de um assunto ou área específica, como, por exemplo, Ciências, Geografia e História) e a compreensão da leitura em idade escolar (e.g., Cromley & Azevedo, 2007; Hjetland et al., 2020; Hwang, 2020). Mas o que significa exactamente esta relação? A resposta é simples. As crianças que, antes da escolaridade obrigatória, dominam o significado de mais palavras compreendem melhor o que ouvem e sabem mais sobre o mundo que as rodeia, têm mais facilidade em compreender o que lêem. No entanto, é fundamental ter em atenção uma ideia muito importante: o desenvolvimento da linguagem oral e a aquisição de conhecimento de conteúdo não ocorrem de forma imediata ou espontânea. Resultam de um processo gradual, que requer uma abordagem intencional e sustentada, com diversas experiências linguísticas e oportunidades para explorar diferentes áreas de conhecimento. Neste sentido, investigadores e especialistas têm sublinhado a importância de promover o mais precocemente possível tanto a linguagem oral como o conhecimento de conteúdo. Mas será que o desenvolvimento da linguagem oral e a aquisição de conhecimento de conteúdo, desde a pré-escola, beneficia todas as crianças, independentemente do estatuto socioeconómico, das capacidades de linguagem oral (à entrada na pré-escola) ou do estatuto de aluno de língua não-materna?

Nos Estados Unidos, tem vindo a crescer o interesse em promover a linguagem oral em articulação com o conhecimento de conteúdo, desde os primeiros anos de escola, para aumentar o desempenho dos alunos na compreensão da leitura. Segundo Cabell e colaboradores (2025), esta abordagem baseia-se na ideia de que as actividades de literacia constituem uma ferramenta fundamental para aumentar o conhecimento de conteúdo, enquanto o ensino desses conteúdos facilita o desenvolvimento das capacidades de literacia, como o vocabulário (Cabell & Hwang, 2023). De acordo com os mesmos autores, a implementação desta abordagem convida os professores a planearem, de forma sistemática, experiências de aprendizagem em torno de temas específicos, recorrendo a actividades de leitura e discussão (como, por exemplo, leitura interactiva em voz alta) que expõem repetidamente as crianças a palavras e ideias semanticamente relacionadas, promovendo assim quer a linguagem oral, quer o conhecimento de conteúdo. Um dos programas amplamente adoptados designa-se Core Knowledge Language Arts: Knowledge Strand (CKLA: Knowledge), que desenvolve de forma integrada a linguagem oral e o conhecimento das crianças nas áreas de Ciências e de Estudos Sociais (Tabela 1).

Tabela 1. Programa CKLA: Knowledge

Estudo de Cabell e colaboradores

Embora o interesse pelo ensino integrado da linguagem oral e do conhecimento de conteúdo tenha crescido consideravelmente nos últimos anos, nenhum estudo que seja do conhecimento de Cabell e colaboradores (2025) analisou o impacto desta abordagem. Neste sentido, os investigadores analisaram a eficácia do programa CKLA: Knowledge, administrado no ensino pré-escolar. Especificamente, os investigadores procuraram responder às seguintes perguntas.

Pergunta 1Qual é o impacto do programa CKLA: Knowledge na linguagem oral (vocabulário e compreensão auditiva) e no conhecimento de conteúdo (conhecimento nas áreas de Ciências e de Estudos Sociais) de crianças do ensino pré-escolar?

Pergunta 2O impacto do programa é moderado pelas habilidades iniciais das crianças à entrada na pré-escola, pelo estatuto de aluno de segunda língua e/ou pelo contexto socioeconómico?

Para responder às perguntas de investigação, Cabell e colaboradores (2025) agruparam os resultados de dois estudos. No total, participaram 1194 crianças do ensino pré-escolar (média de idades = 5,66 anos), de 47 escolas localizadas nos Estados Unidos. As crianças foram distribuídas aleatoriamente por dois grupos: i) grupo de intervenção (n = 565), que beneficiou do programa CKLA: Knowledge; e ii) grupo de controlo (n = 629), que seguiu as práticas pedagógicas habituais das escolas participantes, sem aplicação do programa CKLA: Knowledge. As crianças foram avaliadas em dois momentos distintos — início e meio do ano lectivo —, relativamente à linguagem oral e ao conhecimento de conteúdo (Tabela 2). As avaliações foram realizadas por investigadores num local silencioso, em sessões com duração aproximada de 45 minutos. Os investigadores não tinham conhecimento do grupo a que cada criança pertencia.

Tabela 2. Avaliação da linguagem oral e do conhecimento de conteúdo

O programa CKLA: Knowledge foi administrado durante uma hora, cinco vezes por semana, ao longo de seis meses — de Dezembro a Maio. Os professores receberam formação antes e durante a implementação do programa. Além disso, realizaram-se reuniões quinzenais para apoiar os professores no planeamento das sessões e recolher retorno sobre a aplicação do programa.

De acordo com os resultados do pré-teste, os alunos apresentavam um desempenho médio nas diferentes medidas, embora com pontuações consistentemente baixas no teste de linguagem narrativa. Além disso, não se encontraram diferenças estatisticamente significativas entre o grupo de intervenção e o grupo de controlo nas variáveis demográficas.

Principais resultados

Pergunta 1. Qual é o impacto do programa CKLA: Knowledge na linguagem oral (vocabulário e compreensão auditiva) e no conhecimento de conteúdo (conhecimento nas áreas de Ciências e de Estudos Sociais) de crianças do ensino pré-escolar?

  • Impacto no vocabulário — O programa CKLA: Knowledge produziu um impacto significativo no vocabulário, sobretudo nas palavras leccionadas ao longo das sessões. As crianças que participaram no programa mostraram um domínio substancialmente maior de palavras relacionadas com as áreas de Ciências e de Estudos Sociais, assim como de palavras mais comuns do dia-a-dia. Além disso, a participação no programa permitiu às crianças perceberem como algumas palavras estão semanticamente relacionadas entre si. Por exemplo, palavras associadas à vida dos povos ameríndios, como canoa, foram compreendidas não apenas como palavras isoladas, mas também como parte de um tema mais alargado sobre como essas comunidades vivem. No entanto, o programa não teve impacto nas palavras que não foram ensinadas de forma explícita. Segundo Cabell e colaboradores (2025), este resultado está em linha com o que a investigação tem mostrado, uma vez que as intervenções no vocabulário costumam ter impacto apenas nas palavras que são directamente ensinadas durante as sessões. Ainda assim, as crianças aprenderam mais palavras relacionadas com os temas abordados, mesmo quando estas palavras não estavam incluídas nas avaliações específicas do programa, o que mostra que o ensino de conteúdos contribuiu para a expansão do vocabulário.
  • Impacto na compreensão auditiva — Ao contrário do vocabulário, o programa CKLA: Knowledge não mostrou efeitos significativos na compreensão auditiva. Segundo Cabell e colaboradores (2025), é possível que os testes utilizados para avaliar esta habilidade não estivessem totalmente alinhados com os conteúdos do programa. Por exemplo, o teste que avaliou a compreensão de frases pode ter sido demasiado exigente, uma vez que as habilidades sintácticas são mais difíceis de desenvolver e, por isso, exigem intervenções específicas. Assim, é possível que apenas a exposição a textos mais desafiantes não seja suficiente para melhorar este tipo de habilidades, sendo necessário um ensino mais explícito e intensivo para promover a compreensão auditiva.
  • Impacto no conhecimento de conteúdo — Por último, o programa CKLA: Knowledge mostrou um efeito significativo no conhecimento de conteúdo nas áreas de Ciências e de Estudos Sociais. Embora os professores de ambos os grupos tivessem ensinado conteúdos sobre plantas, as crianças que participaram no programa mostraram um conhecimento mais aprofundado sobre o tema. Quando lhes foi pedido para dizerem tudo o que sabiam sobre plantas, conseguiram fornecer mais informação, o que sugere que a aprendizagem se manteve ao longo do tempo, mesmo vários meses depois de o tema ter sido abordado. Além disso, os resultados indicam que o programa pode ajudar as crianças a transferirem o conhecimento para outras áreas, mesmo quando os temas não foram ensinados directamente. Apesar de este efeito não ter sido estatisticamente significativo, o programa mostrou potencial para apoiar uma aprendizagem mais alargada e, igualmente importante, consolidar o conhecimento adquirido.

Pergunta 2. O impacto do programa é moderado pelas habilidades iniciais das crianças à entrada na pré-escola, pelo estatuto de aluno de segunda língua e/ou pelo contexto socioeconómico?

Os resultados mostraram que o impacto do programa CKLA: Knowledge foi influenciado pelas habilidades iniciais de linguagem oral. Os resultados mostraram, especificamente, que todas as crianças beneficiaram da intervenção, mas as que já apresentavam melhores habilidades de vocabulário no início do ano lectivo aprenderam mais palavras e mostraram um conhecimento mais sólido sobre os temas abordados. De acordo com Cabell e colaboradores (2025), este resultado corrobora a ideia de que as crianças com mais habilidades linguísticas têm maior facilidade em aproveitar as oportunidades de aprendizagem..

Os resultados mostraram também que, apesar de o programa ter produzido um impacto significativo na aprendizagem de todas as crianças, o seu efeito foi maior nas crianças sem estatuto de aluno de segunda língua (isto é, o efeito foi maior nas crianças cuja língua materna era a língua de instrução). Segundo os investigadores, este resultado pode indicar que as crianças com estatuto de aluno de segunda língua necessitam de apoios adicionais para beneficiarem totalmente da intervenção. Por último, os resultados mostraram que o estatuto socioeconómico não influenciou o impacto do programa, sugerindo que o ensino integrado da linguagem oral e do conhecimento de conteúdo beneficia todas as crianças, independentemente do contexto socioeconómico.

Conclusão

Os resultados do presente estudo mostram que é possível melhorar simultaneamente a linguagem oral e o conhecimento de conteúdo das crianças em idade pré-escolar, ao integrar temas ricos e desafiantes nas práticas pedagógicas. O programa CKLA: Knowledge mostrou que as crianças não só aprendem mais vocabulário, como também adquirem um conhecimento mais profundo sobre o mundo, essencial para a futura compreensão da leitura. Assim, todas as crianças podem aprender, desde que lhes sejam dadas as oportunidades e o suporte adequados. Contudo, os resultados sublinham que as crianças que iniciam a pré-escola com habilidades linguísticas mais fracas podem necessitar de apoios adicionais para garantir que o percurso escolar não fique comprometido. Os resultados sublinham também a importância de apostar em intervenções a longo prazo. Se programas como o CKLA: Knowledge forem implementados de forma consistente ao longo dos primeiros anos de escola, as crianças poderão não só aprender milhares de novas palavras, como também desenvolver redes de conhecimento interligadas, fundamentais para a compreensão da leitura e, consequentemente, para o sucesso escolar.

A investigação e a prática educativa convergem assim numa mensagem fundamental: o conhecimento constitui uma ferramenta poderosa para reduzir as desigualdades e promover oportunidades para todas as crianças. Apostar na construção sistemática de conhecimento desde os primeiros anos constitui um caminho promissor para transformar o percurso escolar das crianças e garantir que todas têm a oportunidade de alcançar o seu máximo potencial.

Este texto é um resumo do artigo «Impact of a content-rich literacy curriculum on kindergarteners’ vocabulary, listening comprehension, and content knowledge», disponível aqui.

Referências bibliográficas

Cabell, S. Q., & Hwang, H. (2023). Leveraging content-rich English language arts instruction in the early grades to improve children’s language comprehension. In S. Q. Cabell, S. B. Neuman, & N. Patton Terry (Eds.), Handbook on the science of early literacy (pp. 175-185). Guilford.

Cabell, S. Q., Kim, J. S., White, T. G., Gale, C. J., Edwards, A. A., Hwang, H., Petscher, Y., & Raines, R. M. (2025). Impact of a content-rich literacy curriculum on kindergarteners’ vocabulary, listening comprehension, and content knowledge. Journal of Educational Psychology, 117(2), 153-175. https://doi.org/10.1037/edu0000916

Cromley, J. G., & Azevedo, R. (2007). Testing and refining the direct and inferential mediation model of reading comprehension. Journal of Educational Psychology, 99(2), 311-325. https://doi.org/10.1037/0022-0663.99.2.311

Hjetland, H. N., Brinchmann, E. I., Scherer, R., Hulme, C., & Melby-Lervåg, M. (2020). Preschool pathways to reading comprehension: A systematic meta-analytic review. Educational Research Review, 30, Article 100323. https://doi.org/10.1016/j.edurev.2020.100323

Hwang, H. (2020). Early general knowledge predicts English reading growth in bilingual and monolingual students throughout the elementary years. The Elementary School Journal, 121(1), 154-178. https://doi.org/10.1086/709857

AUTORES

Célia Oliveira

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Célia Oliveira é doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na capacidade de memória operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um mestrado em Psicologia Clínica.

Atualmente, é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da aprendizagem, atenção e memória humana.

Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, quando da realização da sua dissertação de mestrado intitulada «Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras». No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º ciclo do ensino básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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