Célia Oliveira
Soraia Araújo
Introdução
A leitura é uma habilidade multifacetada que requer a integração de diversos componentes cognitivos e linguísticos (Coltheart et al., 2001). Um desses componentes é o conhecimento ortográfico — o conhecimento das normas e das convenções da escrita de uma língua (Conrad et al., 2013). Diversos estudos indicam que o conhecimento ortográfico desempenha um papel fundamental quer nos processos básicos, como o reconhecimento de palavras e a fluência de leitura (a capacidade de ler com velocidade, precisão e expressividade), quer nos processos avançados da leitura, como a compreensão (e.g., Richter et al., 2013; Rothe et al., 2015; Zarić et al., 2021; Zarić & Nagler, 2021). O que significa isto, exactamente? De que forma o conhecimento das normas e das convenções da escrita influencia a leitura?
De acordo com a literatura científica, o reconhecimento de palavras constitui um pré-requisito para a compreensão da leitura: se os leitores não forem capazes de identificar as palavras de um texto, não conseguirão compreender aquilo que leram. Além disso, a compreensão da leitura requer a capacidade de estabelecer relações entre as frases do texto e de identificar e extrair informações relevantes para formular inferências. É precisamente neste contexto que o conhecimento ortográfico desempenha um papel fundamental. Quando os leitores dominam as normas e convenções da escrita conseguem reconhecer de forma rápida e automática as palavras de um texto e, consequentemente, lê-lo com velocidade (ou ao ritmo da fala), precisão e expressividade. Neste sentido, a fluência de leitura, promovida pelo conhecimento ortográfico, reduz a carga cognitiva necessária para o processamento básico das palavras impressas, permitindo que os leitores dediquem maior atenção ao significado do texto. Assim, ao facilitar o reconhecimento automático de palavras e, consequentemente, a fluência de leitura, o conhecimento ortográfico apoia, não só, os processos básicos de leitura, como também a capacidade de compreender o texto.
Estudo de Marković e colaboradores (2024)
Embora o papel do conhecimento ortográfico na leitura seja alvo de diversos estudos, a maioria parece focar-se na sua influência imediata, a curto prazo. Compreender as trajectórias individuais na aquisição da leitura requer uma abordagem longitudinal que permita distinguir os efeitos dos componentes de leitura no desempenho imediato e ao longo do tempo. De acordo com a literatura, só assim será possível identificar os componentes específicos que contribuem para o desenvolvimento das competências de leitura. Neste sentido, Marković e colaboradores (2024) adoptaram uma abordagem longitudinal para explorar a influência do conhecimento ortográfico na aquisição da leitura. Uma vez que estudos anteriores verificaram que o efeito do conhecimento ortográfico na leitura varia conforme o nível avaliado (seja de palavras, frases ou textos; e.g., Zarić & Nagler, 2021), os investigadores analisaram, separadamente, cada um desses níveis. Esta abordagem permitiu-lhes obter uma compreensão mais detalhada de como as diferenças no conhecimento ortográfico se relacionam com a proficiência de leitura a curto e longo prazo.
Marković e colaboradores (2024) procuraram, especificamente, responder às seguintes questões:
- Questão 1. Existe uma relação entre as diferenças no conhecimento ortográfico dos alunos e as variações no desempenho imediato (i.e., a curto prazo) na leitura de palavras, frases e textos?
- Questão 2. As diferenças no conhecimento ortográfico predizem o desenvolvimento da proficiência de leitura ao longo do ano lectivo (i.e., a longo prazo)?
Participaram no estudo 325 alunos do 3.º ano de escolaridade (média de idade = 8.35 anos; 49% meninas), de duas escolas localizadas em Hesse e na Baixa Saxónia, na Alemanha. Os alunos foram avaliados em duas áreas principais: (i) leitura de palavras, frases e textos; e (ii) conhecimento ortográfico. Consideraram-se duas dimensões do conhecimento ortográfico: (a) conhecimento ortográfico geral, que se refere à compreensão das regras que regem a combinação e a posição das letras na ortografia de uma língua; e (b) conhecimento ortográfico específico, relativo à memorização das representações mentais de palavras familiares.
Uma vez que, tal como o conhecimento ortográfico, o vocabulário e a nomeação rápida são componentes essenciais para uma leitura bem-sucedida, os investigadores analisaram a influência destas variáveis na leitura dos alunos, avaliando também o desempenho nestes domínios.
A avaliação da amostra foi realizada em dois momentos: no início do ano lectivo e após as férias de verão (i.e., no início do ano lectivo seguinte).
Principais resultados
- Questão 1. Existe uma relação entre as diferenças no conhecimento ortográfico e as variações no desempenho imediato dos alunos na leitura de palavras, frases e textos?
De acordo com os resultados, a resposta a esta questão é «sim». Os resultados mostraram que o conhecimento ortográfico específico e a capacidade de nomeação rápida estão fortemente associados à proficiência dos alunos na leitura de palavras e frases. Ou seja, a capacidade de identificar e processar rapidamente as representações mentais das palavras está ligada a um melhor desempenho na leitura de palavras e frases. Segundo Marković e colaboradores (2024), estes resultados sugerem, assim, que o conhecimento ortográfico e a nomeação rápida constituem competências essenciais para o sucesso na leitura, pelo menos a curto prazo.
- Questão 2. As diferenças no conhecimento ortográfico predizem o desenvolvimento da proficiência de leitura ao longo do ano lectivo?
Sim, as diferenças no conhecimento ortográfico predizem o desenvolvimento da proficiência de leitura a longo prazo. Os resultados mostraram, especificamente, que quer o conhecimento ortográfico geral quer o conhecimento ortográfico específico predizem a competência dos alunos na leitura de palavras ao longo do tempo. Neste sentido, é possível concluir que, enquanto o conhecimento ortográfico geral e específico apoia o desempenho imediato dos alunos na leitura de palavras isoladas, o conhecimento ortográfico geral, apesar de não predizer os resultados dos alunos a curto prazo, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento da leitura ao longo do tempo. De acordo com a literatura, o conhecimento dos padrões e das regularidades da escrita apoia os alunos na memorização e organização das palavras, facilitando a aprendizagem da leitura.
Os resultados mostraram, ainda, que:
- O conhecimento ortográfico (geral e específico), a capacidade de nomeação rápida e o vocabulário não predizem o desenvolvimento da proficiência na leitura de frases. Este resultado sugere que, embora o conhecimento ortográfico influencie a leitura de frases no início do ano lectivo, a sua influência diminui com o tempo. Segundo Marković e colaboradores (2024), o facto de o conhecimento ortográfico não ter predito o desenvolvimento da leitura de frases ao longo do ano lectivo indica que a sua influência já se encontra consolidada no início do terceiro ano de escolaridade. A partir desse período, a relevância do conhecimento ortográfico diminui, sendo possível que outros factores, como o conhecimento sintático, desempenhem um papel mais importante na leitura.
- O conhecimento ortográfico específico, a capacidade de nomeação rápida e o conhecimento de vocabulário também não predizem desenvolvimento da proficiência na leitura de texto. Assim, embora as representações específicas das palavras não tenham um impacto imediato na leitura de textos, estas influenciam significativamente o seu desenvolvimento ao longo do tempo. Durante a leitura, os leitores armazenam novas palavras no léxico mental, o que facilita o seu reconhecimento e, consequentemente, permite que se concentrarem na compreensão do texto. Por outro lado, o conhecimento ortográfico geral não foi identificado como um factor relevante para o desenvolvimento da leitura de textos, reforçando a ideia de que as representações específicas das palavras desempenham um papel mais crucial no desenvolvimento da proficiência leitora do que o conhecimento das regularidades ortográficas.
Principais ideias a reter:
- Influência do conhecimento ortográfico na leitura a curto e longo prazo: O conhecimento ortográfico apoia, não só, o desempenho imediato dos alunos na leitura, como também influencia o desenvolvimento da proficiência de leitura ao longo do tempo.
- Influência do conhecimento ortográfico nos diferentes níveis de leitura: A influência do conhecimento ortográfico varia conforme o nível de leitura (i.e., palavras, frases e textos). A influência deste componente varia, também, ao longo do tempo.
Neste sentido, dado o impacto significativo do conhecimento ortográfico na leitura, o ensino deste componente tem sido considerado uma prioridade no ensino da leitura desde os primeiros anos de escolaridade. Segundo os investigadores, incorporar o ensino do conhecimento ortográfico nas práticas pedagógicas e, não menos importante, nas intervenções na leitura, promove o sucesso escolar dos alunos ao longo de todo o percurso escolar.
Referências bibliográficas
Coltheart, M., Rastle, K., Perry, C., Langdon, R., & Ziegler, J. (2001). DRC: A dual route cascaded model of visual word recognition and reading aloud. Psychological Review, 108(1), 204–256. https://doi.org/10.1037//0033-295X.108.1.204
Conrad, N. J., Harris, N., & Williams, J. (2013). Individual differences in children’s literacy development: The contribution of orthographic knowledge. Reading and Writing, 26(8), 1223–1239. https://doi.org/10.1007/s11145-012-9415-2
Marković, J., Brod, G., & Tetzlaff, L. (2024). The impact of orthographic knowledge on reading development in German third-graders. Reading and Writing, 1-18. https://doi.org/10.1007/s11145-024-10560-5
Richter, T., Isberner, M. B., Naumann, J., & Neeb, Y. (2013). Lexical quality and reading comprehension in primary school children. Scientific Studies of Reading, 53(9), 1–34. https://doi.org/10.1080/10888438.2013.764879
Rothe, J., Cornell, S., Ise, E., & Schulte-Körne, G. (2015). A comparison of orthographic processing in children with and without reading and spelling disorder in a regular orthography. Reading and Writing, 28(9), 1307–1332. https://doi.org/10.1007/s11145-015-9572-1
Zarić, J., Hasselhorn, M., & Nagler, T. (2021). Orthographic knowledge predicts reading and spelling skills over and above general intelligence and phonological awareness. European Journal of Psychology of Education, 36, 21-43. https://doi.org/10.1007/s10212-020-00464-7
Zarić, J., & Nagler, T. (2021). Reading comprehension on word- and sentence-level can be predicted by orthographic knowledge for German children with poor reading proficiency. Reading and Writing, 34, 2031-2057. https://doi.org/10.1007/s11145-021-10126-9
AUTORES
Célia Oliveira é doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na capacidade de memória operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um mestrado em Psicologia Clínica.
Atualmente, é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da aprendizagem, atenção e memória humana.
Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.
Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.
Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, quando da realização da sua dissertação de mestrado intitulada «Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras». No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º ciclo do ensino básico.
Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.