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Compreensão da leitura: Conceptualização

Ler é, por definição, o “processo de simultaneamente extrair e construir significado por meio da interacção e envolvimento com a linguagem escrita” (Glossário de Literacia, 2020). Extrair e construir significado (compreensão da leitura) depende, essencialmente, de duas capacidades fundamentais: (a) capacidades básicas de leitura; e (b) capacidades de conexão (no inglês, bridging skills).

As capacidades básicas de leitura dizem respeito a um conjunto de competências, como a consciência fonológica, a consciência fonémica e o reconhecimento automático de palavras escritas, que os alunos devem adquirir e dominar antes de se tornarem fluentes na leitura.

O exemplo que se segue demonstra, de forma muito simples, a importância destas capacidades na compreensão da leitura: os alunos com consciência dos sons de padrões de letras, como a sílaba “ca”, serão certamente capazes de descodificar, sem dificuldade, palavras como “caneta”, “cadeira” e “caneca”. A descodificação correcta destas palavras contribuirá, por sua vez, para que os alunos reconheçam os objectos aos quais as palavras se referem e, consequentemente, compreendam um texto que as contenham.

Além disso, os alunos que adquirem experiência na leitura, inclusive na leitura de palavras ortograficamente complexas, como “normalmente” e “geralmente”, afectam menos recursos atencionais à leitura de palavras e mais à compreensão, uma vez que o reconhecimento rápido e automático das palavras do texto permite aceder, directamente, ao seu significado.

Os professores devem, por esta razão, procurar aumentar a capacidade de leitura dos alunos, inclusive por intermédio da promoção da consciência fonémica e da instrução fónica, que, segundo a investigação, são particularmente benéficas no desenvolvimento da compreensão da leitura.

Para compreender um texto, é fundamental que os alunos adquiram, também, capacidades de conexão.

Estas capacidades permitem estabelecer uma ligação entre a descodificação e a compreensão das palavras de um texto e correspondem à flexibilidade cognitiva semântica grafofonológica, à consciência morfológica e à fluência de leitura.

A flexibilidade cognitiva semântica grafofonológica é, segundo a literatura, a capacidade de um aluno atender e, simultaneamente, alternar entre as letras-sons das palavras (grafonológica) e o respectivo significado (semântica). O que significa isto, exactamente? Na Figura 1, apresenta-se uma matriz que cruza as relações letras-sons e os significados das palavras.

Na primeira linha horizontal encontram-se duas palavras que se referem a comida (“banana” e “avelã”) e, na segunda linha, uma palavra que se refere a um meio de transporte (“barco”). Por outro lado, na primeira linha vertical, ambas as palavras começam com /b/ (“banana” e “barco”) e, na segunda linha, a palavra apresentada começa com /a/ (“avelã”).

Para completar a matriz correctamente, os alunos devem perceber que a palavra em falta (representada por um ponto de interrogação) começa com /a/ (assim com a palavra que se encontra acima) e corresponde a um meio de transporte (tal como a palavra que se encontra no lado esquerdo e que, neste caso, poderia ser, por exemplo, “avião”).

Figura 1
Matriz para promover a flexibilidade cognitiva semântica grafofonológica

A consciência morfológica consiste na capacidade de reflectir e manipular a estrutura morfológica das palavras. Apoia os alunos na tarefa de reconhecimento e de interpretação, quer de morfemas flexionais (e.g., sufixo “-mos”, na palavra “falamos”), quer de morfemas derivacionais (e.g., sufixo “-idade”, na palavra “formalidade”).

A importância da consciência morfológica na compreensão do texto, é inegável. Segundo a literatura, o ensino intensivo da morfologia para além de influenciar, directamente, a compreensão da leitura, estimula o desenvolvimento de capacidades essenciais para os alunos compreenderem aquilo que lêem.

Por último, a fluência de leitura, isto é, a capacidade de ler um texto com precisão, velocidade e expressividade, também constitui uma das capacidades que permitem estabelecer uma ligação entre a descodificação e a compreensão da leitura. Como? A resposta é muito simples. Ler palavras com precisão permite que os alunos construam uma base de compreensão correcta do texto.

Ler com velocidade permite, por sua vez, que os alunos afectem mais recursos atencionais à compreensão do texto, do que à sua descodificação.

Finalmente, ler com prosódia ou expressividade, tanto reflecte, como apoia, a compreensão do texto. Segundo a investigação, práticas instrucionais que visam melhorar a fluência dos alunos na leitura, como o teatro e a leitura em pares, influenciam positivamente a compreensão da leitura.

 

Oito noções fundamentais acerca da compreensão da leitura

Duke et al. (2021) apresentam oito ideias essenciais acerca da compreensão da leitura:

  • A compreensão da leitura não é automática, mesmo quando há fluência na leitura:

Embora as capacidades básicas de leitura e as capacidades de conexão sejam fundamentais para a compreensão da leitura, a investigação refere que não são suficientes para os alunos alcançarem uma compreensão efectiva do texto. De acordo com Duke et al. (2021), a compreensão requer um conjunto amplo de conhecimentos, estratégias e disposições, que vai além da capacidade de ler com fluência.

  • O ensino da compreensão da leitura deve iniciar-se o mais cedo possível:

Como Duke et al. (2021) referem, a necessidade de os alunos adquirirem capacidades básicas de leitura antes de se tornarem leitores fluentes, leva a crer que o ensino da leitura deve focar-se, inicialmente, nas capacidades básicas e, somente mais tarde, dirigir-se para o desenvolvimento da compreensão. A investigação refere, no entanto, que o ensino da leitura deve contemplar um modelo simultâneo, em vez de sequencial. As capacidades básicas de leitura devem, por isso, ser promovidas em conjunto com a compreensão da linguagem oral e da linguagem escrita (através da leitura em voz alta, por exemplo).

  • O ensino da estrutura e de recursos de texto promove o desenvolvimento da compreensão da leitura:

De acordo com a literatura, uma das razões pelas quais as capacidades de descodificação e de compreensão auditiva não são, por si sós, suficientes para uma compreensão efectiva da leitura, é que há muitos elementos do texto escrito, como os sinais de pontuação e os elementos gráficos, que não existem num ambiente de linguagem puramente oral.
Conhecer a estrutura do texto, isto é, ter uma ideia acerca da complexidade sintáctica e da densidade conceptual, é, à semelhança dos recursos textuais, fundamental para a compreensão da leitura. O ensino da estrutura e de elementos do texto assume, por isso, um papel crucial.

  • A compreensão varia de acordo com o tipo de texto e o objectivo da leitura:

A compreensão da leitura é significativamente influenciada pelo que se lê e pelo propósito da leitura. O aluno está a ler uma história sobre animais selvagens ou um texto sobre o corpo humano? O aluno está a ler por prazer ou para compreender a matéria da disciplina de Estudo do Meio? É importante ter em atenção estas questões.

  • O vocabulário e o conhecimento prévio apoiam a compreensão da leitura:

O ensino do significado das palavras de um texto apoia, segundo a literatura, a sua compreensão. Além disso, a probabilidade de um aluno conhecer as palavras de uma história sobre leões, por exemplo, é certamente influenciada pelo seu conhecimento sobre animais selvagens. Por esta razão, um aluno com mais conhecimento sobre animais selvagens será, seguramente, mais capaz de compreender um texto sobre leões, do que os colegas que saibam muito pouco sobre estes animais. O desenvolvimento do vocabulário e do conhecimento prévio, em sala de aula, é, por isso, fundamental.

  • O ensino explícito de estratégias para compreender um texto assume um papel importante:

Os alunos com capacidade para compreender um texto envolvem-se em actividades mentais específicas para apoiar a compreensão do que estão a ler. Aparentemente, alguns alunos aprendem a fazê-lo de forma natural. No entanto, muitos outros beneficiarão do ensino explícito de estratégias, tais como: (a) pensar antes, durante e depois da leitura; (b) como monitorar a compreensão; (c) como proceder quando não se compreende uma parte do texto; (d) resumir o texto; e (e) responder a perguntas sobre o texto.

  • Promover o envolvimento dos alunos com o texto aumenta a compreensão da leitura:

Promover o envolvimento com o texto escrito, quer a partir da experiência em leitura, discussão e análise do texto, quer através da escrita e resposta a perguntas sobre o mesmo, é uma das condições necessárias para os alunos adquirirem proficiência na compreensão da leitura.

A técnica ‘leitura silenciosa em suporte’ (no inglês, scaffolded silent reading) constitui uma das estratégias que promovem a compreensão da leitura. Esta estratégia deve, no entanto, ser implementada apenas quando os alunos são capazes de ler sem o apoio directo do professor, e inclui: (a) instrução explícita de estratégias de selecção de livros; (b) sessões individuais de leitura, nas quais os alunos lêem em voz alta e respondem a perguntas sobre o texto; e (c) definição e monitorização de metas de leitura.

De acordo com a literatura, envolver o aluno em discussões sobre o texto, através de, por exemplo, conversas instrutivas sobre o tema, influencia, significativamente, a compreensão da leitura. Analisar o texto, isto é, reconhecer e analisar certas estruturas frásicas ou figuras de estilo, como as anáforas, também promove a compreensão leitora, bem como a capacidade de responder a perguntas de compreensão, principalmente sobre textos narrativos e expositivos.

A escrita promove, também, o envolvimento dos alunos com o texto. De acordo com a investigação mais recente, escrever resumos aumenta a compreensão da leitura. Além disso, numa meta-análise, Graham et al. (2018) verificaram que, quando os professores ensinam, em simultâneo, a leitura e a escrita, a compreensão dos alunos melhora significativamente.

  • A motivação para a leitura apoia a compreensão dos alunos:

Muitos investigadores citam a revisão promovida pelo National Reading Panel acerca do ensino da leitura, na qual são identificados cinco domínios-chave: (a) consciência fonológica; (b) consciência fonémica; (c) fluência de leitura; (d) vocabulário; e (e) compreensão. Embora estes domínios sejam cruciais, não representam todos os factores que devem ser considerados no ensino da leitura.

A motivação para a leitura constitui um factor fundamental para a compreensão da leitura que, como referem Duke et al. (2021), muitas vezes deixamos ao acaso. Um aluno que gosta de leões, por exemplo, irá certamente esforçar-se mais para compreender um texto relacionado com estes animais, terá mais sucesso ao lê-lo e estará mais motivado para ler textos semelhantes no futuro. Motivar os alunos para a leitura é, portanto, muitíssimo importante.

Actividades práticas e fornecer retorno são duas estratégias que, segundo a investigação, aumentam significativamente a motivação para a leitura e, consequentemente, a compreensão.

Com base nestas ideias, Duke et al. (2021) desenvolveram um modelo específico de ensino da compreensão da leitura (Figura 1). 

O modelo reflecte as conclusões mais recentes da investigação em leitura e incorpora diversas práticas instrucionais que exercem um efeito significativo no desenvolvimento da compreensão da leitura. De modo geral, o ensino da compreensão da leitura é descrito como devendo ocorrer a par da aquisição de conhecimento e desenvolvimento da linguagem. 

Além disso, a motivação para a leitura é apresentada como um construto a ser desenvolvido em conjunto com a promoção de capacidades relacionadas com a compreensão da leitura, como a consciência morfológica e a fluência de leitura. O modelo evidencia, ainda, que é possível ajustar a quantidade de instrução com base nos pontos fortes e necessidades dos alunos, como por exemplo, através de instruções adicionais sobre estratégias de compreensão.

Figura 2 
Modelo de ensino da compreensão da leitura de Duke et al. (2021)

EM SUMA:

  1. Promover o desenvolvimento da compreensão da leitura requer, para a grande maioria dos alunos, uma abordagem multifacetada. Com base na investigação mais recente, Duke et al. (2021) sublinharam a importância e eficácia de diversas práticas instrucionais, potencialmente benéficas para o desenvolvimento da compreensão da leitura. O trabalho desenvolvido pelo grupo de investigadores deu origem a um modelo de ensino dinâmico que pode ter implicações muito importantes para o ensino desta componente na sala de aula.

Referência Bibliográfica: Duke, N. K., Ward, A. E., & Pearson, P. D. (2021). The science of reading comprehension instruction. The Reading Teacher, 74(6), 663-672.

Um olhar sobre a ciência do ensino da compreensão da leitura

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AUTORES

João Lopes

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João Arménio Lamego Lopes dirige o projeto AaZ – Ler Melhor, Saber Mais. Licenciado em Psicologia pela Universidade do Porto (1981), Mestre em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento (Universidade do Porto, 1991) e doutorado em Psicologia da Educação pela Universidade do Minho (1996). Professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho desde 1995.

Professor Associado com Agregação, da mesma Universidade (2004). Director do Departamento de Psicologia Aplicada (2015-2019) e do Mestrado em Temas de Psicologia da Educação da UM. Director do Programa de Doutoramento em Psicologia Aplicada para os países da CPLP. Presidente do Conselho Cientifico-Pedagógico da Formação Contínua de professores (2014-2018), representante de Portugal no CERI-OCDE (2015-2017) e membro do Conselho Geral do IAVE (2013-2018).

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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