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Nunca tantas pessoas aprenderam a ler. No entanto, o desempenho dos alunos na leitura fluente e na compreensão do que lêem continua a ser insatisfatório — tendência agravada pelos efeitos da pandemia de covid-19. Por isso, a compreensão leitora tem interessado cada vez mais os investigadores, e um estudo de 2025, incidindo na educação pré-escolar, procura responder a duas dúvidas concretas neste domínio. Integrar o ensino do vocabulário com o do conhecimento de conteúdo ajuda à compreensão da leitura dos alunos em idade pré-escolar? E será que variáveis — como o que as crianças já percebem ao entrar na pré-escola, o contexto socioeconómico donde vêm ou o facto de a língua de instrução não ser a língua materna — exercem influência nos resultados?

Nas últimas décadas, os estudos têm confirmado haver, na idade escolar, uma relação sólida entre o desenvolvimento precoce da linguagem oral, o conhecimento de conteúdo — geral ou num tema específico — e a compreensão da leitura. As crianças que, antes da escolaridade obrigatória, dominam o significado de um número maior de palavras, que compreendem melhor o que ouvem e que sabem mais do mundo que as rodeia também entendem mais facilmente o que lêem.

O desenvolvimento da linguagem oral e a aquisição de conhecimento de conteúdo não são, porém, imediatos nem espontâneos. Resultam de um processo gradual, que exige uma abordagem sustentada em que se explorem diferentes áreas. Por isso, a ciência tem realçado a importância de articular, o mais cedo possível, a linguagem oral com o conhecimento de conteúdo.

Mas será que desenvolver a linguagem oral e adquirir conhecimento de conteúdo logo na pré-escola beneficia todas as crianças da mesma maneira? Além disso, o estatuto socioeconómico do aluno, as suas capacidades orais à entrada da pré-escola ou o facto de a língua de instrução não ser a materna terão influência neste processo?

Integrar linguagem e o conhecimento num único programa de aprendizagem

Nos Estados Unidos, as actividades na literacia constituem uma estratégia crucial para aumentar o conhecimento de conteúdo, e vice-versa: o ensino de conteúdo facilita o desenvolvimento da literacia. Os professores norte-americanos são convidados a planear experiências de aprendizagem de temas específicos, que decorrem em actividades de leitura e discussão — por exemplo, na leitura interactiva em voz alta. Estas actividades expõem as crianças a palavras e ideias associadas entre si, promovendo, por um lado, a linguagem oral, por outro, o conhecimento de conteúdo.

No artigo «Impact of a content-rich literacy curriculum on kindergarteners’ vocabulary, listening comprehension, and content knowledge», publicado na revista Journal of Educational Psychology em 2025, a investigadora Sonia Q. Cabell e colaboradores analisam o impacto de um dos programas de aprendizagem mais interessantes entre os adoptados nos Estados Unidos.

O Core Knowledge Language Arts: Knowledge Strand (CKLA) desenvolve de forma integrada a linguagem oral — em concreto, o vocabulário e a compreensão auditiva — e o conhecimento em Ciências e em Estudos Sociais. Neste programa, seleccionam-se textos de diferentes géneros (quer narrativos, quer informativos) das duas áreas referidas, textos esses organizados de maneira cumulativa e crescentemente complexa, para que as crianças vão estabelecendo um conhecimento sistemático dos tópicos abordados. Pretende-se que melhorem a compreensão da leitura, mas que também possam transferir o conhecimento adquirido para outras áreas, o que lhes permite estabelecer associações entre domínios diferentes do saber. Por exemplo, a aprendizagem das plantas antecede o estudo das quintas, criando bases sólidas para explorar temas mais avançados, tais como os povos ameríndios.

Os professores lêem os textos, recorrendo a pausas estratégicas para discutir as ideias do texto e ensinar vocabulário, por exemplo, em definições e exemplos. A exposição contínua e a utilização intencional do vocabulário em contextos diferentes ajudam as crianças a formarem redes semânticas, que facilitam a compreensão auditiva e a aprendizagem de outras palavras. Por exemplo, uma criança com conhecimento prévio de dinossauros pode compreender facilmente o significado de termos relacionados, como omnívoro, carnívoro e herbívoro.

Discutindo o texto antes, durante e após a leitura motiva os alunos a participarem: expressando ideias, clarificando conceitos e estabelecendo ligações entre o conhecimento que já tinham e o que estão a adquirir. As discussões incluem perguntas literais e inferenciais, fundamentais para as crianças desenvolverem a linguagem oral e entenderem o conteúdo dos textos. Por fim, as actividades de escrita são uma oportunidade de as crianças aplicarem e consolidarem o vocabulário, reforçando a aprendizagem.

Como se estudou o impacto deste programa de aprendizagem nos alunos da pré-escola?

No seu artigo, Sonia Q. Cabell e colaboradores analisaram a eficácia do programa CKLA no ensino pré-escolar. Procuraram responder especificamente a duas perguntas.

  • Que impacto teve o programa na linguagem oral e no conhecimento de conteúdo das crianças da educação pré-escolar?
  • O impacto do programa é influenciado pelas habilidades que as crianças já têm quando entram na pré-escola, pelo seu contexto socioeconómico ou por a língua de instrução não ser a materna?

Sonia Q. Cabell e colaboradores agruparam os resultados de dois estudos em que participaram 1194 crianças do ensino pré-escolar, com idade média de 5,7 anos, de 47 escolas dos Estados Unidos. O programa tinha sido administrado durante uma hora, cinco vezes por semana, ao longo de seis meses (de Dezembro a Maio). Os professores haviam recebido formação antes e durante a aplicação do programa, em reuniões quinzenais para apoiar o planeamento das sessões e recolher retorno.

As crianças foram distribuídas aleatoriamente por dois grupos:

1) grupo de intervenção, com 565 alunos que beneficiaram do programa CKLA;

2) grupo de controlo, com 629 alunos que seguiram as práticas pedagógicas habituais das escolas participantes, sem aplicação do programa.

No pré-teste, os alunos apresentavam um desempenho médio, embora com pontuações consistentemente baixas no teste de linguagem narrativa — mas sem se encontrarem nas variáveis demográficas diferenças significativas entre o grupo de intervenção e o grupo de controlo.

Avaliaram-se a linguagem oral e o conhecimento de conteúdo das crianças duas vezes — no início e a meio do ano lectivo — num local silencioso, em sessões de 45 minutos, sem que os investigadores soubessem a que grupo cada criança pertencia. A avaliação incidiu em três grandes áreas:

Que impacto teve o programa?

No vocabulário, o programa CKLA produziu um impacto significativo, sobretudo nas palavras leccionadas. As crianças do programa mostraram um domínio substancialmente maior de palavras das áreas de Ciências e de Estudos Sociais, assim como de palavras mais quotidianas.

A participação no programa permitiu ainda que as crianças percebessem a relação semântica de certas palavras entre si. Por exemplo, compreenderam as palavras associadas à vida dos povos ameríndios (como canoa) não só como palavras isoladas, mas como parte de um tema alargado sobre o modo como essas comunidades vivem. No entanto, o programa não teve impacto nas palavras que não foram ensinadas de forma explícita.

Estes resultados confirmam o que a investigação tem mostrado: as intervenções no vocabulário costumam resultar apenas nas palavras ensinadas directamente nas sessões. Ainda assim, as crianças aprenderam mais palavras relacionadas com os temas abordados, mesmo que não integrassem as avaliações do programa. Logo, o ensino de conteúdos contribuiu para expandir o vocabulário.

na compreensão auditiva, o programa CKLA não mostrou efeitos significativos, mas é possível que os testes de avaliação desta habilidade não estivessem totalmente alinhados com os conteúdos do programa. Por exemplo, o teste de compreensão de frases pode ter sido demasiado exigente, pois as habilidades sintácticas, sendo mais difíceis de desenvolver, exigem intervenções específicas. Por isso mesmo, não basta expor as crianças a textos mais desafiantes, pode ser necessário um ensino mais explícito e intensivo.

Por último, o programa CKLA mostrou um efeito significativo no conhecimento de conteúdo de Ciências e de Estudos Sociais. Embora os professores dos dois grupos tivessem ensinado conteúdos sobre plantas, as crianças do programa mostraram um conhecimento mais aprofundado do tema. Quando lhes pediram que dissessem tudo o que sabiam sobre plantas, conseguiram fornecer mais informação. Isto indica que a aprendizagem se manteve mesmo vários meses depois de abordado o tema. Além disso, os resultados sugerem que o programa pode ajudar as crianças a transferirem conhecimento para outras áreas, ainda que os temas não tinham sido ensinados directamente. Apesar de o efeito não ser significativo, o programa mostrou potencial para consolidar o conhecimento adquirido.

Há alguma influência do que as crianças já sabem fazer à entrada da pré-escola, do seu contexto socioeconómico e de a língua de instrução não ser a materna?

Segundo os resultados, o impacto do programa CKLA foi influenciado pelas habilidades iniciais da linguagem oral. Todas as crianças beneficiaram da intervenção, mas as que já tinham melhores habilidades de vocabulário no início do ano lectivo aprenderam mais palavras e mostraram um conhecimento mais sólido dos temas. Corrobora-se, pois, a ideia de que as crianças com mais habilidades linguísticas aproveitam mais facilmente as oportunidades de aprendizagem.

Apesar de o programa ter produzido resultados significativos na aprendizagem de todas as crianças, o efeito foi maior nas crianças cuja língua de instrução era a materna. Segundo os investigadores, as crianças com estatuto de aluno de segunda língua podem precisar de mais apoios para beneficiar totalmente da intervenção.

Por último, o estatuto socioeconómico não parece ter influenciado o impacto do programa. O ensino integrado da linguagem oral e do conhecimento de conteúdo beneficiou todas as crianças, independentemente do contexto socioeconómico.

Em suma…

O artigo de Sonia Q. Cabell e colaboradores mostra que é possível melhorar simultaneamente a linguagem oral e o conhecimento de conteúdo das crianças em idade pré-escolar. No programa CKLA, as crianças aprendem mais vocabulário, e também adquirem um conhecimento mais profundo do mundo, essencial na compreensão da leitura. Assim, todas as crianças podem aprender, desde que lhes dêem oportunidades e apoio adequados.

Contudo, as crianças que começam a pré-escola com habilidades linguísticas mais fracas podem exigir mais apoios para que não se comprometa o seu percurso escolar — e é importante que a intervenção seja de longo prazo. Se programas como este forem aplicados de modo consistente nos primeiros anos, as crianças podem aprender milhares de novas palavras e desenvolver redes de conhecimento interligadas, fundamentais na compreensão da leitura — logo, fundamentais no sucesso escolar.

A investigação científica e a prática educativa convergem numa mensagem fundamental: o conhecimento é um instrumento poderoso de redução das desigualdades e de promoção de oportunidades para todas as crianças. Apostar no desenvolvimento sistemático de conhecimento logo nos primeiros anos é um caminho promissor para transformar o percurso escolar das crianças — e garantir que todas têm a oportunidade de alcançar o seu máximo potencial.

Referência bibliográfica

Cabell, S. Q., Kim, J. S., White, T. G., Gale, C. J., Edwards, A. A., Hwang, H., Petscher, Y., & Raines, R. M. (2025). Impact of a content-rich literacy curriculum on kindergarteners’ vocabulary, listening comprehension, and content knowledge. Journal of Educational Psychology, 117(2), 153-175. https://doi.org/10.1037/edu0000916

AUTORES

Célia Oliveira é Doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na Capacidade Memória Operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um Mestrado em Psicologia Clínica.

Atualmente é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da Aprendizagem, Atenção e Memória Humana.

Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.

Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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