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Introdução                                                                                                                 

A escrita desempenha um papel fundamental na aquisição e desenvolvimento da linguagem e literacia. Escrever, principalmente quando a tarefa envolve actividades de composição, como criar uma mensagem com significado em detrimento de actividades de transcrição (escrever o primeiro nome ou copiar letras e palavras), é uma actividade comunicativa que depende significativamente do domínio da linguagem oral e do conhecimento do código escrito (Limpo & Alves, 2018; Puranik et al., 2014). Neste sentido, é de importância fundamental para a aquisição bem-sucedida da escrita que se apoie a aquisição e aplicação 1) de aptidões linguísticas (de vocabulário, sintaxe e pragmática), 2) do conhecimento do código escrito (nomeadamente o conhecimento dos conceitos de escrita – do inglês concepts of print) e 3) das correspondências entre as letras e os sons da fala (Berninger et al., 2017).

De acordo com a literatura especializada, a escrita composicional e a aquisição de aptidões linguísticas e de literacia estão relacionadas de forma recíproca. Especificamente, apoiar as crianças durante a realização de actividades de composição beneficia a aquisição de aptidões linguísticas (especialmente o vocabulário) e de literacia; e, por sua vez, a promoção destas aptidões beneficia a escrita composicional (Aram & Biron, 2004; Berninger et al., 2002; Chambré et al., 2020; Zhang & Bingham, 2019). Entre as diversas estratégias de apoio à escrita, destacam-se os apoios ao nível da linguagem e do código escrito. Estes apoios podem variar na exigência de envolvimento cognitivo das crianças, diferenciando-se entre «apoio de exigência alta» – quando as tarefas requerem elevado envolvimento – e «apoio de exigência baixa», quando as tarefas requerem menos envolvimento.

O estudo de Farrow e colaboradores (2024)

Segundo este estudo, existe pouca investigação sobre as estratégias utilizadas pelos professores para apoiar os alunos na aquisição de habilidades de escrita, principalmente de escrita composicional. Considerando que o conhecimento acerca desta questão é fundamental para aumentar a aprendizagem dos alunos, os investigadores analisaram as estratégias adoptadas pelos professores durante a realização de actividades de escrita composicional em dois contextos: numa mensagem matinal, realizada em grande grupo (i.e., com a turma completa) e em actividades de escrita em pequenos grupos. Farrow et al. (2024) procuraram responder às seguintes questões:

Questão 1. Quanto tempo dedicam os professores à realização de actividades de escrita composicional? Que actividades específicas de escrita ocorrem durante a mensagem matinal e as tarefas de escrita em pequenos grupos?

 Questão 2. Em que medida apoiam os professores a aquisição de aptidões linguísticas e do conhecimento do código escrito, durante a mensagem matinal e as tarefas de escrita em pequenos grupos? Qual o nível de exigência desse apoio? Será um apoio de exigência alta ou um apoio da exigência baixa?

Questão 3. Em que medida o apoio dos professores ao nível da linguagem e do código escrito difere de acordo com o contexto (entre a mensagem matinal e as tarefas de escrita em pequenos grupos) e o ano de escolaridade?

Questão 4. Será que o tipo de apoio (nos domínios da linguagem e do código escrito) e o nível de exigência (alta e baixa) predizem a aquisição inicial da literacia e do vocabulário dos alunos no final do ano lectivo?

Participaram no estudo 28 professores do jardim-de-infância e do 1.º ano de escolaridade de escolas localizadas nos Estados Unidos, assim como os respectivos alunos (N = 324; média de idades = 5,4 anos). Todos os alunos apresentavam vulnerabilidades ao nível da linguagem e eram provenientes de famílias com dificuldades económicas.

No início do ano lectivo, cada professor gravou em vídeo as actividades realizadas durante a mensagem matinal e as tarefas de escrita em pequenos grupos ao longo de um dia, totalizando 56 vídeos. O apoio dos professores foi codificado em termos de (i) apoio ao nível da linguagem, que envolveu o acompanhamento na formulação, recuperação, uso e organização de ideias e palavras para gerar texto escrito, assim como na aplicação da linguagem em contextos comunicativos (processo denominado «tradução») e (ii) apoio ao nível do código escrito, que incluiu o acompanhamento na compreensão das convenções da escrita e do princípio alfabético (processo denominado «transcrição»). Foram codificadas, também, as sub-habilidades relacionadas com os processos de tradução e de transcrição, assim como o nível de exigência, definido como o grau ou medida em que os alunos foram incentivados a envolver-se activamente na aprendizagem (ver Tabela 1).

Os alunos foram avaliados nos domínios do conhecimento alfabético (i.e., nomeação das letras do alfabeto e, excepto os alunos do jardim-de-infância, do som correspondente a cada letra), da consciência fonémica (i.e., som inicial e as rimas no caso dos alunos do jardim-de-infância e combinação de fonemas individuais para formar uma palavra no caso dos alunos do 1.º ano) e do vocabulário (receptivo). As avaliações foram realizadas em dois momentos: no Outono (o início do ano lectivo) e na Primavera (a meio do ano lectivo).

Tabela 1. Codificação das sub-habilidades relacionadas com os processos de tradução e transcrição

Principais resultados:

Questão 1. Quanto tempo dedicam os professores à realização de actividades de escrita composicional? Que actividades específicas de escrita ocorrem durante a mensagem matinal e as tarefas de escrita em pequenos grupos?

Os professores dedicaram, em média, 18 minutos e 39 segundos à mensagem matinal e 11 minutos e 39 segundos às tarefas de escrita em pequenos grupos. Durante a mensagem matinal, as actividades mais frequentes foram o ensino explicativo/informativo de conceitos. Questões como “O que temos estado a aprender sobre o Outono?” representaram 43% das actividades de escrita composicional. A escrita de um texto de opinião sobre um mote como “Que actividades mais gostam de fazer com a vossa família?” equivaleram a 32%. Durante as tarefas de escrita em pequenos grupos (média de cinco alunos por grupo), as actividades mais frequentes foram a escrita de opinião (a resposta a questões como “Do que é que mais gostam do Outono”, representando 47%) e, em seguida, o ensino explicativo/informativo (a resposta a perguntas semelhantes a “O que aprenderam sobre abóboras?” representou 29% das actividades de escrita).

Questão 2. Em que medida apoiam os professores a aquisição de aptidões linguísticas e do conhecimento do código escrito durante a mensagem matinal e as tarefas de escrita em pequenos grupos? Qual o nível de exigência desse apoio? Será um apoio de exigência alta ou um apoio da exigência baixa?

O apoio ao nível do código escrito foi mais frequente do que ao nível da linguagem, em ambos os contextos (i.e., mensagem matinal e tarefas de escrita em pequenos grupos). Especificamente, num dia escolar, durante a mensagem matinal e as tarefas de escrita em pequenos grupos, os professores apoiaram os alunos ao nível do código escrito 61 vezes e ao nível da linguagem 38 vezes. No entanto, o apoio ao nível do código focou-se fundamentalmente na compreensão de conceitos de escrita, em vez de no ensino das correspondências letras-sons. Por sua vez, o apoio ao nível da linguagem centrou-se na aquisição de aptidões de linguagem pragmática, especialmente na formulação e atenção ao tema, em vez de no ensino de aptidões de linguagem oral, como o vocabulário e a sintaxe.

Em matéria de exigência, os professores recorreram com mais frequência ao apoio de baixa exigência ao nível do código escrito e ao apoio de exigência alta ao nível da linguagem.

Questão 3. Em que medida o apoio dos professores ao nível da linguagem e do código escrito difere de acordo com o contexto (entre a mensagem matinal e as tarefas de escrita em pequenos grupos) e o ano de escolaridade?

Durante a mensagem matinal, os professores centraram-se mais no ensino do código escrito do que no ensino da linguagem. No entanto, durante as tarefas de escrita em pequenos grupos, os professores centraram-se mais no ensino da linguagem. Adicionalmente, os resultados revelaram que, durante as actividades em pequenos grupos, o apoio dos professores centrou-se fundamentalmente na aquisição de aptidões de linguagem pragmática, relacionadas com a formulação, atenção e desenvolvimento de temas, do que durante a mensagem matinal. Por outro lado, os professores apoiaram com menos frequência a aquisição de aptidões de linguagem oral, principalmente o vocabulário, durante as tarefas de escrita em pequenos grupos do que durante a mensagem matinal.

Os resultados revelaram, ainda, que o apoio dos professores ao nível da linguagem e do código escrito não varia de acordo com o ano de escolaridade: os professores oferecem um nível semelhante de apoio nessas áreas independentemente do ano de escolaridade dos alunos.

Questão 4. Será que o tipo de apoio (apoio ao nível da linguagem e do código escrito) e o nível de exigência (alta e baixa) predizem a aquisição da literacia e de vocabulário no final do ano lectivo?

Os resultados mostraram que existe uma relação significativa entre o apoio de exigência alta ao nível da linguagem e do código escrito, por um lado, e a aquisição da literacia e de vocabulário, por outro.

Aquisição da literacia

Apoio de exigência alta ao nível da linguagem: O apoio de exigência alta ao nível da linguagem incentivou os alunos a formular, traduzir e transcrever ideias. De acordo com Farrow et al. (2024), este apoio aumentou a atenção dos alunos para a transcrição, independentemente de os professores os ajudarem explicitamente na aplicação correcta das normas da escrita. Além disso, segundo os investigadores, é possível que a qualidade das experiências linguísticas fornecidas pelos professores durante as tarefas de composição tenha contribuído, ainda que indirectamente, para o desenvolvimento da consciência fonológica, uma aptidão relacionada com a escrita na infância (e.g., Walley et al., 2003; Wolf et al., 2017).

Apoio de exigência alta ao nível do código escrito: O apoio de exigência alta ao nível do código (à semelhança do apoio de exigência baixa) teve um efeito positivo, mas não significativo, na aprendizagem da literacia. Este resultado pode ser atribuído à atenção elevada dos professores ao código escrito. De acordo com a literatura, a aprendizagem da literacia deve estar integrada em contextos da vida real, em vez de ser adquirida de forma isolada (Berninger et al., 2002; Wolf et al., 2017). Neste estudo, os professores podem ter apoiado os alunos sem conectar os conteúdos aos processos de formulação e tradução de ideias, como por exemplo, através da modelagem da escrita centrada no professor. Além disso, a escrita envolve uma aptidão intimamente relacionada com a aquisição inicial da literacia: a coordenação visuo-motora (ou seja, a coordenação entre o que os alunos veem e a forma como movem a mão), como apontado por diversos autores, incluindo Zhang & Bingham, 2019). O aumento da frequência do apoio ao nível do código escrito pode não ter envolvido os alunos em actividades reais de escrita. Por exemplo, os professores podem ter escrito o nome de cada aluno em vez de incentivá-los ou permitir que os alunos o fizessem.

Aquisição de vocabulário

Apoio de exigência alta ao nível da linguagem: O apoio de exigência alta ao nível da linguagem promoveu actividades de escrita em que a liderança foi assumida pelos alunos (os alunos foram responsáveis pela escrita de texto) e não pelos pelos professores (os professores escreveram o texto enquanto os alunos observavam). De acordo com a literatura, este tipo de apoio pode facilitar o processamento cognitivo-linguístico dos alunos, promovendo a aquisição de vocabulário de duas formas. Em primeiro lugar, o diálogo durante a escrita facilita a transição da linguagem contextualizada (quando se diz, por exemplo, que “aquelas folhas são vermelhas”) para a descontextualizada (como no exemplo “gostamos de ir ao parque no Outono porque as folhas mudam para cores bonitas”), aumentando a análise e produção de linguagem descontextualizada pelos alunos. Segundo a literatura, este tipo de linguagem aumenta a atenção dos alunos em relação à sintaxe e ao vocabulário (Berninger et al., 2017; Farrow et al., 2020).

Em segundo lugar, o apoio de exigência alta ao nível da linguagem e do código escrito permite que os alunos alternem a atenção entre os diferentes níveis de linguagem (linguagem simples versus linguagem formal; vocabulário técnico versus abstracto), o que é fundamental para a aquisição de literacia (e.g., Aram & Biron, 2004; Berninger et al., 2017),.

Apoio de exigência alta ao nível do código escrito: O apoio de exigência alta ao nível do código escrito facilita a comunicação dos alunos. O foco na transcrição de ideias pode aumentar a atenção dos alunos para as palavras e para a forma como a linguagem é utilizada (Ehri, 2014). Embora poucos estudos tenham explorado a influência do apoio dos professores ao nível do código escrito na aquisição de vocabulário, alguns estudos sugerem que analisar e soletrar palavras pode melhorar o processamento do seu significado (Abbott et al., 2010). Neste sentido, à semelhança de estudos anteriores, os resultados deste estudo indicam que quando o apoio ao nível do código inclui o ensino das correspondências letras-sons, os alunos podem compreender mais facilmente o significado das palavras (Chambrè et al., 2020; Rosenthal & Ehri, 2011).

Conclusão

No essencial, os resultados permitem concluir que o apoio de exigência alta ao nível do código e da linguagem está significativamente relacionado com a aquisição inicial da literacia e de vocabulário. De acordo com Farrow et al. (2024), estes resultados destacam o valor pedagógico da escrita composicional como um contexto propício para os professores apoiarem a aquisição e desenvolvimento da linguagem e da literacia. Segundo a literatura especializada, o envolvimento dos alunos no uso da linguagem durante o processo de escrita pode melhorar significativamente a aprendizagem, reduzindo as disparidades ao nível da linguagem e da literacia, especialmente entre crianças que enfrentam dificuldades de linguagem.

Referências bibliográficas

Farrow, J., Hindman, A. H., & Wasik, B. A. (2024). Exploring relations between teachers’ language- and code-based writing supports to early literacy and vocabulary learning in children with language vulnerabilities. Reading & Writing Quarterly, 1-22. https://doi.org/10.1080/10573569.2024.2304764

AUTORES

Célia Oliveira

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Célia Oliveira é Doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na Capacidade Memória Operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um Mestrado em Psicologia Clínica.

Atualmente é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da Aprendizagem, Atenção e Memória Humana.

Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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