pt
Newsletter
glossario

saber mais

Introdução

A consciência morfológica, definida como a consciência da estrutura morfémica das palavras e a capacidade de manipular e reflectir sobre essa estrutura, desempenha um papel fundamental na aprendizagem da leitura. De acordo com a literatura, a consciência morfológica inclui, especificamente, a percepção de quatro aspectos fundamentais:

  1. a forma falada e escrita dos morfemas;
  2. o significado que os afixos adicionam à palavra-base (como saber que o prefixo «re» dá à palavra-base o significado de repetição, como em reencontro, recomeço e recandidatura);
  3. a forma como os afixos impressos se relacionam com a palavra-base (saber que sufixos como «-íssimo», «-ar» e «-ção» alteram a estrutura da palavra-base, como em bonito → bonitíssimo; conceitos → conceituar; instruir → instrução);
  4. a relação entre a palavra-base e as respectivas formas inflectidas ou derivadas (saber que diversas palavras se encontram relacionadas porque compartilham a mesma base, como no exemplo de viver: vida, vivência, vivido, reviver e sobreviver).

Carlisle (2000) destaca três processos a partir dos quais as palavras podem ser formadas: 

  1. composição, que envolve a combinação de dois ou mais morfemas para criar uma palavra que mantém a classe gramatical, mas altera o significado (para + quedas = paraquedas; gira + sol = girassol);
  2. flexão, que envolve a adição de afixos para indicar informações gramaticais sem alterar a categoria gramatical da palavra-base [como em livro (singular) e livros (plural); amar (infinitivo) e amando (gerúndio); cantar (infinitivo) e cantou (pretérito perfeito)];
  3. derivação, que envolve a adição de afixos para alterar o significado e a categoria gramatical da palavra-base [como em doce (adjectivo) e adoçar (verbo); cultura (substantivo) e cultural (adjectivo); feliz (adjectivo) e felicidade (substantivo)].

De acordo com diversos estudos, a consciência morfológica está relacionada com a compreensão da leitura dos alunos com idades entre os 5 e os 14 anos (Deacon & Kirby, 2004; Levesque et al., 2021; Nagy et al., 2006).

Mas, de que forma a capacidade de reflectir e manipular a estrutura morfológica das palavras apoia a compreensão do que se lê?

Segundo a literatura, a consciência morfológica apoia a compreensão da leitura de diversas formas. Por exemplo, uma vez que os morfemas inflexionais marcam as relações sintáticas entre as palavras de uma frase, isto é, a função que as palavras desempenham numa frase em relação umas às outras, os alunos com consciência morfológica flexional terão maior êxito na compreensão da leitura de frases (e.g., Manolitsis et al., 2017). No entanto, embora os processos de formação de palavras (i.e. composição, flexão e derivação) possam apresentar padrões de desenvolvimento diferentes, poucos estudos têm analisado a relação entre esses processos e a compreensão da leitura. Além disso, a maioria dos estudos que analisaram a relação entre a consciência morfológica e a compreensão da leitura centrou-se nos processos de flexão e derivação, tendo poucos estudos considerado o processo de composição (Clark et al., 1986; James et al., 2020). Deacon e Kirby (2004) verificaram que a consciência da morfologia flexional aos 7 anos prediz a compreensão da leitura dos 8 aos 10 anos. Gilbert et al. (2014) e Kieffer e Box (2013) verificaram, por sua vez, que a consciência da morfologia derivacional prediz a compreensão da leitura dos 8 aos 12 anos.

Tal como a idade dos alunos e o tipo de palavras que lêem (nomeadamente palavras com origem composicional, flexional e/ou derivacional), as características dos testes que avaliam a consciência morfológica e a compreensão da leitura podem influenciar a relação entre estas habilidades. De acordo com a literatura, o formato de resposta pode influenciar o nível de dificuldade dos testes, assim como a força da relação entre a consciência morfológica e a compreensão da leitura (e.g., Apel et al., 2012; Keenan et al., 2008). Por exemplo, nos testes de consciência morfológica, as tarefas que exigem que os alunos gerem uma palavra-base e a respectiva forma derivada podem ser mais difíceis do que as tarefas que exigem que os alunos determinem a relação entre essas formas linguísticas (i.e. relação entre a palavra-base e a palavra derivada; Apel & Thomas-Tate, 2009). Por sua vez, nos testes de compreensão da leitura, as tarefas que utilizam formatos de resposta de preenchimento e correspondência de imagens estão mais relacionadas com a leitura do que com a compreensão auditiva (Keenan et al., 2008).

A modalidade de resposta pode, também, influenciar a relação entre a consciência morfológica e a compreensão da leitura. Embora a influência desta característica tenha sido pouco estudada, Stark (2011) verificou que as respostas escritas dependem de dois aspectos fundamentais, relacionados com a compreensão: vocabulário e conhecimento ortográfico. Estudos recentes têm apontado a necessidade de se considerar, ainda, dois outros aspectos, a saber:

  1. a apresentação da tarefa, já que ouvir a pronúncia da palavra pode apoiar a sua decomposição através da associação com a prosódia lexical, isto é, a pronúncia pode apoiar o reconhecimento dos morfemas da palavra, assim como as respectivas representações lexicais (e.g., Carlisle, 2003; Chan et al., 2020). Por exemplo, Carlisle (2000) verificou uma relação mais forte entre a consciência morfológica e a compreensão da leitura, avaliadas a partir de estímulos auditivos, do que Stark (2011), que avaliou ambas as competências a partir de estímulos na forma escrita;
  2. o tipo de processamento exigido pelas tarefas de compreensão, uma vez que, em comparação com as informações apresentadas de forma explícita, os leitores diferem consideravelmente na capacidade de responder a perguntas que exigem o estabelecimento de inferências (Cain & Oakhill, 1999).

O estudo de Liu e colaboradores (2024)

Liu et al. (2024) analisaram, a partir de uma revisão sistemática e meta-análise da literatura científica, a influência da consciência morfológica na compreensão da leitura de crianças e adolescentes que aprendem a ler inglês como primeira língua. Os investigadores analisaram, também, a influência da idade dos alunos, do tipo de palavras (especificamente, palavras com origem composicional, flexional e derivacional) e das características dos testes de consciência morfológica e de compreensão da leitura na relação entre ambas as habilidades (i.e., consciência morfológica e compreensão da leitura).

Principais resultados

Liu et al. (2024) analisaram os resultados de 44 estudos que incluíram 126 correlações entre a consciência morfológica e a compreensão da leitura e nos quais participaram 13.790 alunos com idades entre os 6 e os 16 anos. Os investigadores verificaram que:

  1. Existe uma relação significativa entre a consciência morfológica e a compreensão da leitura. Especificamente, os alunos com melhores resultados nos testes de consciência morfológica foram os que alcançaram resultados mais elevados nos testes de compreensão da leitura. À semelhança de estudos anteriores (James et al., 2020; Levesque et al., 2019; Tong et al., 2014), este resultado destaca a importância da consciência morfológica na compreensão da leitura;
  2. A relação entre a consciência morfológica e a compreensão da leitura não aumenta com a idade dos alunos. Embora este resultado não esteja em conformidade com estudos anteriores (Carlisle, 2000; Deacon & Kirby, 2004), permite concluir que a consciência morfológica tem um papel importante na compreensão em todas as fases da aprendizagem da leitura;
  3. O tipo de palavras influencia significativamente a relação entre a consciência morfológica e a compreensão da leitura. Ainda assim, os resultados mostraram que essa influência só se manifesta quando a consciência morfológica é avaliada através de testes que englobam palavras tanto de origem derivacional quanto flexional, em vez de apenas palavras derivacionais. Segundo Liu et al. (2024), este resultado pode dever-se ao facto de que poucos estudos incluíram medidas exclusivas de consciência morfológica flexional, o que impossibilitou a análise da sua influência específica. Por esta razão, este resultado deve ser interpretado com cuidado;
  4. As características dos testes de consciência morfológica não exercem um efeito significativo na relação entre esta habilidade e a compreensão da leitura. No entanto, em conformidade com estudos anteriores (Carlisle, 2000; Stark, 2011), os resultados mostraram que a influência destes testes é mais elevada quando os estímulos são apresentados por meio auditivo (ao invés de visualmente) e requerem respostas orais (em vez de respostas escritas). Os resultados mostraram, ainda, que a influência dos testes de consciência morfológica é maior quando utilizam um formato de resposta de escolha múltipla em vez de respostas que requeiram produção de palavras. De acordo com a literatura, tarefas de produção que exigem que os alunos gerem uma palavra-base e uma forma derivada podem ser mais complexas do que as tarefas que exigem reflectir acerca da relação entre ambas as formas linguísticas, uma vez que as primeiras são mais dependentes das habilidades de ortografia e da leitura de palavras do que as tarefas de reflexão (Apel et al., 2012; Apel & Thomas-Tate, 2009; Carlisle, 2000). Os resultados mostraram, ainda, que os testes que avaliam a consciência das unidades morfémicas das palavras têm uma influência maior na compreensão da leitura do que os que avaliam a consciência dos significados dos afixos, assim como das alterações que estes provocam nas palavras-base;
  5. As características dos testes de compreensão da leitura também não exercem um efeito significativo na relação entre a consciência morfológica e a compreensão. Este resultado permite concluir, assim, que a natureza da avaliação da compreensão da leitura tem pouco impacto na sua relação com a consciência morfológica.

Conclusão

No essencial, Liu et al. (2024) verificaram que a consciência morfológica desempenha um papel fundamental na compreensão da leitura, independentemente da idade dos alunos e dos testes que as avaliam. Os resultados do presente estudo destacam, assim, a importância de integrar o ensino da morfologia na aprendizagem da leitura desde os primeiros anos de escolaridade até aos anos mais avançados.

Referências bibliográficas

Liu, Y., Groen, M. A., & Cain, K. (2024). The association between morphological awareness and reading comprehension in children: A systematic review and meta-analysis. Educational Research Review, 100571. https://doi.org/10.1016/j.edurev.2023.100571

AUTORES

Célia Oliveira

saber mais

Célia Oliveira é Doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na Capacidade Memória Operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um Mestrado em Psicologia Clínica.

Atualmente é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da Aprendizagem, Atenção e Memória Humana.

Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.

Soraia Araújo

saber mais

Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

Receba as nossas novidades e alertas

Acompanhe todas as novidades.
Subscrever