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Introdução

Aprender a ler em português pode não ser tão fácil como aprender a ler em espanhol e italiano. Aprender a ler em inglês pode não ser tão fácil como aprender a ler em francês e finlandês. Porquê? De acordo com a literatura, a leitura é influenciada pela consistência da língua, isto é, pelo sistema de correspondência entre as letras e os sons da fala. A leitura em diferentes ortografias não tem, portanto, a mesma complexidade. No contexto europeu, o finlandês é a língua com a ortografia mais transparente (consistente), seguida do italiano, do grego e do espanhol. O inglês e o sueco têm, por sua vez, uma ortografia opaca (pouco consistente), estando, portanto, no extremo oposto. Por fim, entre os extremos existem as línguas semi-transparentes, como o português, o francês e o holandês.

Simões e Martins (2020) afirmam que a língua portuguesa é constituída por 35 fonemas e 67 grafemas. Embora o português seja constituído por correspondências grafo-fonológicas previsíveis, não existe uma correspondência directa entre as letras e os sons da fala. Um grafema pode representar mais de um fonema e um fonema pode ser representado por mais de um grafema.  

De acordo com a literatura, quando não existe uma relação biunívoca entre as letras e os sons da fala, os leitores podem recorrer a regras contextuais e posicionais para facilitar a leitura. Porém, no português a leitura de vogais e consoantes é particularmente desafiante, uma vez que a) foneticamente, é possível identificar catorze vogais, b) uma consoante pode corresponder a sons diferentes e c) existem sons que, tal como Simões e Martins (2020) referem, podem ser representados por várias consoantes. Por exemplo, o som [s], pode ser representado por <s>, <ss>, <ç> e <c>, quando o grafema <s> é seguido das vogais <i> ou <e>. Além disso, dependendo da consoante que se lhe segue, o grafema <s> pode ser lido como [ʃ] ou [ᴣ], como por exemplo nas palavras <disco>/[d’iʃku] e <musgo>/ [mˈuʒɡu], respectivamente.

A língua portuguesa é constituída por dígrafos vocálicos (<am>, <an>, <em>, <en>, <im>, <in>, <om>, <on>, <um>, <un>) e dígrafos consonantais (<lh>, <nh>, <ch>, <rr>, <ss>, <qu>, <gu>, <sc>, <sç>, <xc>). É constituída, também, por agrupamentos de duas ou mais consoantes, designados encontros consonantais (e.g., <bl> em <blusa>[blˈuzɐ]; <gl> em <glutão>[glut’ɐ̃w]; <pl> em <triplo> [tɾˈipl]; <dr> em <vidro>[vˈidɾu] e <vr> em <palavra>[pɐlˈavɾɐ]). O português é constituído ainda por ditongos, isto é, sequências fónicas que podem ser compostas por uma vogal e uma semivogal (ditongos decrescentes, e.g., caixa; leite; azuis), ou uma semivogal e uma vogal (ditongos crescentes, e.g., quadrado; miséria; água). Além disso, os ditongos podem ser orais (quando os fonemas são articulados com a passagem do ar pela cavidade oral, e.g., pai; chapéu), ou nasais (quando os fonemas são articulados com a passagem do ar pela cavidade nasal e oral, e.g., mãe; mão; lições).

Por último, a ortografia portuguesa é constituída maioritariamente (46,36%) por sílabas CV (consoante-vogal). Os padrões silábicos CVC (consoante-vogal-consoante) e CCV (consoante-consoante-vogal) são, por sua vez, os que ocorrem com menos frequência no português (11,01% e 2,18%, respectivamente), sendo a sua frequência predominantemente na posição inicial da palavra. Segundo a literatura, a aprendizagem da estrutura fonológica destas sílabas não ocorre totalmente nos primeiros anos de escolaridade, constituindo por isso um desafio para as crianças mais novas.

 

Estudo de Simões e Martins

Objectivos e participantes

De acordo com diversos estudos, realizados em diferentes ortografias, a complexidade grafémica e a estrutura silábica influenciam a aprendizagem da leitura. Alguns destes estudos analisaram, especificamente, os erros na leitura de dígrafos e estruturas silábicas complexas. Porém, em Portugal, poucos estudos foram realizados. Nunes e Aldinis (1999) verificaram que nos primeiros anos de escolaridade as crianças portuguesas cometem mais erros na leitura de palavras com dígrafos do que de palavras sem dígrafos. Os autores verificaram também que a velocidade de leitura de palavras com dígrafos é mais lenta, principalmente se constituírem a primeira sílaba. Por sua vez, Gomes (2001) verificou que as crianças cometem mais erros na leitura de estruturas silábicas complexas do que na leitura de estruturas simples. Simões e Martins (2020) procuraram aprofundar esta questão, ao analisar e comparar os erros de crianças do 1.º e 2.º ano de escolaridade na leitura de dígrafos e estruturas silábicas complexas. As investigadoras procuraram especificamente responder às seguintes questões:

  1. Existem diferenças entre o primeiro e o segundo ano na leitura de dígrafos? Quais são os principais erros de leitura em cada ano de escolaridade?
  2. Existem diferenças entre os dois primeiros anos de escolaridade na leitura de sílabas complexas? Quais são os principais erros de leitura no primeiro e segundo ano?

Participaram no estudo 175 alunos do primeiro ano de escolaridade e 137 alunos do segundo ano, de seis escolas do distrito de Lisboa. Os alunos foram avaliados individualmente através da Prova de Leitura Oral de Palavras (Alves Martins & Simões, 2008). Esta prova consiste num lista de 32 palavras que variam em termos de regularidade, frequência, comprimento e estrutura silábica. Os alunos receberam as seguintes instruções: «Lê as palavras desta lista, em voz alta, o melhor que puderes e o mais depressa que conseguires.»

A leitura dos alunos foi gravada e a forma fonética das palavras lidas foi transcrita. A gravação e registo das palavras lidas permitiu avaliar a precisão de leitura e analisar os tipos de erros.

Principais resultados

Simões e Martins (2020) verificaram diferenças estatisticamente significativas entre os alunos do primeiro e do segundo ano na leitura dos dígrafos <ch>, <ss> e <rr>. As investigadoras verificaram especificamente que os alunos do primeiro ano cometem mais erros de leitura. Relativamente à leitura dos dígrafos <lh>, <nh> e <gu> não foram encontradas diferenças significativas entre os dois anos de escolaridade.

Os resultados mostraram também que a substituição por outro dígrafo em palavras com <ch>, <lh> e <nh> é o principal erro de leitura dos alunos do primeiro e segundo ano de escolaridade. As crianças tendem a substituir os dígrafos <ch> e <lh> por <nh>. De acordo com Simões e Martins (2020), este erro de substituição pode ser explicado pelo facto de o dígrafo [ɲ] ser o primeiro dígrafo adquirido na linguagem oral e, portanto, o mais fácil para as crianças. No que diz respeito aos dígrafos <ss>, <rr> e <gu>, os resultados mostraram que as crianças dos dois primeiros anos de escolaridade costumam ler a palavra como se o dígrafo não existisse, isto é, lêem apenas a primeira letra.

Por último, mas não menos importante, Simões e Martins (2020) verificaram diferenças estatisticamente significativas entre os alunos do primeiro e do segundo ano na leitura de sílabas complexas. O número de erros dos alunos do segundo ano é inferior ao dos alunos mais novos na maioria das sílabas com estrutura CCV e CVC. Além disso, na leitura de palavras com sílabas CCV é frequente verificar três tipos de erros: a) adição de uma vogal, após a primeira consoante, b) inversão (a sílaba é transformada em CVC) e c) supressão da segunda consoante. De acordo com Simões e Martins (2020), o erro de adição é o erro de leitura que as crianças do primeiro ano cometem com mais frequência. Segundo as investigadoras, este tipo de erro pode revelar uma estratégia de simplificação da estrutura silábica da palavra escrita. Ao adicionar uma vogal, as crianças alteram a estrutura silábica da palavra para uma mais simples e frequente na ortografia portuguesa: CVCV. Relativamente ao erro de inversão, Simões e Martins (2020) afirmam que a estrutura silábica CVC é muito comum no primeiro ano de escolaridade, uma vez que do ponto de vista fonológico é adquirida antes das sílabas CV. Além disso, no português, a estrutura silábica CC é a última a ser adquirida.

Em suma

A ortografia do português europeu é, em geral, considerada como uma estrutura silábica simples. Apesar disso, a leitura de dígrafos e sílabas com estrutura CVC e CCV pode constituir um grande obstáculo para as crianças nos primeiros anos de escolaridade. Segundo Simões e Martins (2020), esta dificuldade está relacionada com o grau de transparência da ortografia portuguesa que, apesar de constituída por correspondências grafo-fonológicas consistentes, inclui alguns grafemas que não têm uma relação biunívoca com os fonemas correspondentes.

Bibliografia

Simões, E. A., & Martins, M. A. (2020). Analysis of reading errors in Portuguese: Digraphs and complex syllabic structures. Análise Psicológica38(2), 199-210. https://doi.org/10.14417/ap.1732

AUTORES

João Lopes

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João Arménio Lamego Lopes dirige o projeto AaZ – Ler Melhor, Saber Mais. Licenciado em Psicologia pela Universidade do Porto (1981), Mestre em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento (Universidade do Porto, 1991) e doutorado em Psicologia da Educação pela Universidade do Minho (1996). Professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho desde 1995.

Professor Associado com Agregação, da mesma Universidade (2004). Director do Departamento de Psicologia Aplicada (2015-2019) e do Mestrado em Temas de Psicologia da Educação da UM. Director do Programa de Doutoramento em Psicologia Aplicada para os países da CPLP. Presidente do Conselho Cientifico-Pedagógico da Formação Contínua de professores (2014-2018), representante de Portugal no CERI-OCDE (2015-2017) e membro do Conselho Geral do IAVE (2013-2018).

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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