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Fundamentos teóricos        

Nas últimas décadas, diversos investigadores têm sugerido que as capacidades de processamento fonológico desempenham vários papéis importantes na matemática. Antes de avançar para o que literatura refere a este respeito, é importante compreender em que consiste exactamente o processamento fonológico.

O processamento fonológico refere-se muito simplesmente à utilização da estrutura sonora da linguagem para processar informação oral e escrita. Segundo a literatura, este processamento inclui três capacidades: a) a consciência fonológica, que consiste no conhecimento da estrutura sonora da linguagem oral (informação fonológica), b) a nomeação rápida, definida como a velocidade de acesso à informação fonológica, armazenada na memória de longo prazo, e c) a memória fonológica, definida como o armazenamento temporário de informação acerca da estrutura sonora da linguagem oral.

De acordo com o modelo de LeFevre et al. (2010), as capacidades de processamento fonológico constituem componentes importantes do quadro linguístico que contribuem para o desenvolvimento do conhecimento matemático. Segundo os autores, a importância das capacidades de processamento fonológico na matemática deve-se muito provavelmente ao facto de o desenvolvimento do conhecimento matemático depender significativamente da capacidade de codificação de representações fonológicas de números, termos e operadores. Além disso, o conhecimento matemático baseia-se, em grande medida, na automaticidade da recuperação aritmética. O que significa isto? A resposta a esta questão é relativamente simples. A resolução de problemas aritméticos exige a recuperação da informação fonológica, armazenada na memória de longo prazo, acerca do número de palavras e factos operacionais. Representações fonológicas limitadas e imprecisas podem impedir a resolução de problemas de matemática, principalmente dos que requerem a manipulação de códigos verbais numéricos.

A relação entre as capacidades de processamento fonológico e o conhecimento matemático foi alvo de alguns estudos nos últimos anos. Koponen et al. (2017) verificaram uma associação significativa entre a nomeação rápida e a matemática, bem como que a nomeação rápida está mais correlacionada com tarefas de fluência matemática do que com tarefas de precisão matemática, e Friso Van den Bos et al. (2013) encontraram uma correlação significativa entre a memória fonológica e o conhecimento matemático. Embora estes estudos tenham chegado a conclusões importantes, não incluíram as três capacidades de processamento fonológico: consciência fonológica, nomeação rápida e memória fonológica. Além disso, não compararam a relação entre as capacidades de processamento fonológico e o conhecimento matemático.

Estudo de Yang e colaboradores

Enquadramento e objectivos

Tendo em conta as limitações apontadas, Yang et al. (2021) procuraram, através de uma meta-análise, responder às seguintes questões:        

  1. Qual é a relação entre as capacidades de processamento fonológico (especificamente, a consciência fonológica, a nomeação rápida e a memória fonológica) e a matemática?
  2. Que factores moderam as correlações entre o processamento fonológico e a matemática?
  3. A relação entre as capacidades de processamento fonológico e a matemática muda, quando o vocabulário, a inteligência não-verbal e o funcionamento executivo (competências gerais) são controlados?

Para responder a estas questões, Yang et al. (2021) seleccionaram e analisaram detalhadamente 94 estudos. Nestes estudos, participaram alunos do jardim-de-infância e do ensino básico. Os resultados são bastante interessantes e esclarecedores.

Resultados

Relação entre processamento fonológico e matemática. Os resultados mostraram que as capacidades de processamento fonológico e o conhecimento matemático estão significativamente relacionados. Estes resultados vão ao encontro da literatura, sugerindo que: a) a consciência fonológica ajuda as crianças a desenvolver e manipular conhecimentos básicos de matemática (e.g., reconhecimento de números, cardinalidade, ordinalidade), b) a nomeação rápida constitui provavelmente um indicador da recuperação automática do conhecimento matemático na memória de longo prazo, c) a memória fonológica apoia a memória de trabalho e o raciocínio durante a aprendizagem e realização de exercícios de matemática. Além disso, as capacidades de processamento fonológico são susceptíveis de promover o conhecimentos matemático, o que, como Yang et al. (2021) referem, é fundamental para o desenvolvimento de conhecimentos mais aprofundados. A relação significativa entre o processamento fonológico e a matemática não é, portanto, surpreendente.

Efeito moderador das capacidades de processamento fonológico. Tal como esperado, os resultados mostraram que a consciência fonológica e a nomeação rápida estão mais relacionadas com o conhecimento matemático do que a memória fonológica. De acordo com Yang et al. (2021), este resultado pode dever-se ao facto de a maioria dos estudos considerar o desempenho em tarefas de espaçamento de dígitos e de palavras (no inglês, digit span tasks e word span tasks, respectivamente) como indicador da capacidade da memória fonológica. Nas tarefas de espaçamento de dígitos, as crianças têm de enunciar em voz alta a sequência dos dígitos apresentados oralmente, enquanto nas tarefas de espaçamento de palavras têm de recordar listas de palavras. Segundo os investigadores, a nomeação de padrões sonoros de dígitos e/ou de palavras familiares é apoiada pelas respectivas representações lexicais, armazenadas na memória fonológica. Dígitos e palavras familiares podem revelar-se, por esta razão, um indicador menos sensível da memória fonológica do que dígitos e palavras não-familiares (pseudo-palavras, por exemplo), fazendo com que esta capacidade, em comparação com a consciência fonológica e a nomeação rápida, seja considerada menos importante para a aprendizagem da matemática.

Efeito moderador de factores relacionados com a matemática. A relação entre as capacidades de processamento fonológico e o conhecimento matemático foi influenciada por diversos factores relacionados com a matemática. De acordo com os resultados obtidos, a consciência fonológica está mais relacionada com a resolução de problemas definida como a capacidade de compreender uma narrativa matemática, extrair um problema aritmético dessa narrativa e resolvê-lo do que com o conhecimento básico numérico (e.g., cardinalidade e ordinalidade). Segundo Yang et al. (2021), este resultado pode dever-se à ajuda da consciência fonológica na representação e manipulação de segmentos da linguagem oral.

Os resultados mostraram, também, que a memória fonológica está mais relacionada com a resolução de problemas do que com o cálculo. De acordo com a literatura, os problemas de matemática tendem a ser mais complexos, uma vez que as crianças têm necessariamente de extrair, manipular e representar factos aritméticos na resolução de problemas. Por outro lado, a resolução de problemas depende, além da memória fonológica, da memória de trabalho e de longo prazo. Segundo os investigadores, estas são duas das justificações possíveis para os resultados do estudo.

Os resultados mostraram ainda que a nomeação rápida está significativamente mais relacionada com o cálculo do que com a resolução de problemas de matemática. Os resultados são, mais uma vez, consistentes com a literatura. Quer a recuperação dos nomes dos dígitos, quer a operação e recuperação de respostas, constituem, segundo diversos estudos, os processos mais importantes para a realização de quaisquer cálculos.

Por último, mas não menos importante, os resultados mostraram que: a) a nomeação rápida está significativamente mais relacionada com a fluência matemática do que com a precisão matemática — esta conclusão é consistente com estudos anteriores que mostram que a nomeação rápida reflecte a velocidade de acesso e de recuperação de representações fonológicas armazenadas na memória de longo prazo —, e b) a consciência fonológica está significativamente mais relacionada com a precisão matemática do que com a fluência matemática — segundo Yang et al. (2021), este resultado pode estar simplesmente relacionado com o método de avaliação destes factores.

Efeito moderador de características da amostra. Os resultados mostram que a relação entre a capacidade de nomeação rápida e o conhecimento matemático é mais significativa em crianças do jardim-de-infância do que em crianças do ensino básico. Segundo Yang et al. (2021), esta diferença pode dever-se ao facto de a velocidade de acesso à informação fonológica, armazenada na memória de longo prazo, ser mais benéfica para a aquisição de conhecimentos de matemática em idades mais precoces. Além disso, embora a capacidade de recuperação esteja geralmente menos desenvolvida em crianças mais novas, a capacidade de nomeação rápida (de dígitos e/ou letras) desenvolve-se mais cedo do que a maioria dos conhecimentos de matemática.

Os investigadores verificaram também que a relação entre as capacidades de processamento fonológico e o conhecimento matemático não varia entre as crianças com um desenvolvimento típico (ou considerado «normal») e as que são identificadas com dificuldades de aprendizagem. No entanto, é importante ter em atenção que, embora as crianças em diferentes fases de desenvolvimento apliquem diversas estratégias na aprendizagem da matemática, todas as tarefas requerem processamento fonológico. Por exemplo, a utilização de estratégias baseadas na recuperação é mais comum em crianças com um desenvolvimento típico, mas estratégias baseadas na contagem (e.g., contar em voz alta) são mais frequentemente utilizadas por crianças com dificuldades de aprendizagem. O processamento fonológico assume, segundo a literatura, um papel fundamental em qualquer uma destas estratégias.

Por último, Yang et al. (2021) verificaram que, após o controlo das capacidades gerais (vocabulário, funcionamento executivo e inteligência não-verbal, especificamente), a relação entre as capacidades de processamento fonológico e os diversos conhecimentos de matemática, nomeadamente o conhecimento numérico, o cálculo, a precisão e a fluência matemática, manteve-se significativa. Estes resultados indicam nitidamente a existência de uma relação independente entre o processamento fonológico e a matemática.

Principais implicações e ideias a reter

  1. A relação entre o processamento fonológico e a matemática é influenciada pela natureza da capacidade de processamento fonológico, pelos diversos tipos de conhecimento matemático e pelas características da amostra.
  2. A relação mais significativa entre as capacidades de processamento fonológico e o conhecimento matemático, em crianças mais novas, sugere que o ensino de princípios fonológicos pode ser muito benéfico nas fases iniciais do ensino básico.

Bibliografia

Yang, X., Yan, M., Ruan, Y., Ku, S. Y. Y., Lo, J. C. M., Peng, P., & McBride, C. (2021). Relations among phonological processing skills and mathematics in children: A meta-analysis. Journal of Educational Psychology. 114(2), 1-19. https://doi.org/10.1037/edu0000710

AUTORES

João Lopes

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João Arménio Lamego Lopes dirige o projeto AaZ – Ler Melhor, Saber Mais. Licenciado em Psicologia pela Universidade do Porto (1981), Mestre em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento (Universidade do Porto, 1991) e doutorado em Psicologia da Educação pela Universidade do Minho (1996). Professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho desde 1995.

Professor Associado com Agregação, da mesma Universidade (2004). Director do Departamento de Psicologia Aplicada (2015-2019) e do Mestrado em Temas de Psicologia da Educação da UM. Director do Programa de Doutoramento em Psicologia Aplicada para os países da CPLP. Presidente do Conselho Cientifico-Pedagógico da Formação Contínua de professores (2014-2018), representante de Portugal no CERI-OCDE (2015-2017) e membro do Conselho Geral do IAVE (2013-2018).

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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