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Introdução

Considere o seguinte exemplo:

Ana (pseudónimo), professora de educação especial, apoia, em sessões de pequenos grupos, alunos do 4.o ano de escolaridade com dificuldades de leitura. Ao longo das sessões de apoio, que se baseiam, fundamentalmente, no treino do conhecimento fónico, Ana tem verificado que os alunos têm progredido na leitura de palavras monossilábicas. No entanto, continuam a demonstrar dificuldades na leitura de palavras polissilábicas, assim como na leitura fluente de texto e na compreensão do que lêem. Determinada a encontrar estratégias eficazes para contornar a situação, Ana deparou-se com o conceito «intervenções multicomponentes». Confirmando os potenciais benefícios desta abordagem, e a fim de acelerar o progresso dos alunos, Ana desenvolveu um plano de intervenção centrado na prática simultânea ou combinada das diversas competências de leitura, em detrimento da tradicional prática sequencial, em que cada competência é ensinada de forma isolada e  progressiva (isto é, o avanço para o ensino de outras competências só ocorre após o domínio da competência ensinada anteriormente).

A investigação sugere que as intervenções multicomponentes, em sessões de pequenos grupos, representam uma abordagem eficaz às necessidades dos alunos com dificuldades de leitura em diversos domínios, como a fluência, a compreensão e o vocabulário.

Como planear e administrar intervenções multicomponentes

Para apoiar os professores no planeamento e na administração de intervenções multicomponentes, Daniel et al. (2024) descreveram a aplicação de uma sessão de intervenção na leitura de palavras, fluência e compreensão da leitura, dirigida a alunos do 4.o ano com desempenho de leitura abaixo do esperado. Nesta descrição, os investigadores especificam de que forma o ensino simultâneo de diversas competências de leitura pode ser integrado nas sessões de apoio ministradas fora da sala de aula, em grupos de dois a cinco alunos.

Primeira parte — Ensino da leitura de palavras e do respectivo significado (10 minutos)

Teoria e investigação. O ensino simultâneo da leitura de palavras e do respectivo significado é apoiado, essencialmente, pela hipótese da qualidade lexical (Perfetti, 2007; Perfetti & Hart, 2002). De acordo com esta hipótese, o conhecimento de palavras permite aos leitores identificarem-nas e associarem-nas ao respectivo significado, influenciando, consequentemente, a compreensão do texto. Diversos estudos têm corroborado esta hipótese. A título de exemplo, Austin et al. (2021) verificaram que o ensino simultâneo da leitura e do significado das palavras tem um impacto mais significativo na fluência da leitura do que o ensino isolado da leitura de palavras.

Definição de objectivos. Os professores devem definir o objectivo das actividades a realizar, referindo, por exemplo: «Hoje vamos explorar como algumas palavras são compostas por morfemas. Os morfemas são muito importantes na leitura. Sabem porquê? Porque nos ajudam a descobrir o significado das palavras que ainda não conhecemos. Vamos começar?»

Instrução explícita. Os professores podem começar por escrever prefixos no quadro, como, por exemplo, in, e referir: «As letras i-n representam o som /in/. Mais uma vez, que som é este?» Cada aluno deve repetir o som emitido. Posteriormente, os professores podem mostrar aos alunos a palavra «infeliz» e afirmar que o prefixo in representa o som /i//n/. Além disso, podem seguir (com o dedo, por exemplo) e soletrar cada fonema da palavra, especificamente: /i/ /n/ /f/ /e/ /l/ /i/ /z/. Por último, os professores podem combinar o som de cada fonema e dizer, em voz alta, «infeliz».

Os professores podem sugerir a realização de uma actividade de análise morfológica, tal como a apresentada no Quadro 1. Devem começar por ensinar o significado do prefixo in, mencionando os possíveis significados do morfema (e. g., indicar negação, falta ou ausência de algo, como, por exemplo, «incapaz» e «inadequado»; indicar movimento para dentro ou estar localizado dentro de algo, como, por exemplo, «interior», e «inserir»; indicar envolvimento ou inclusão, como, por exemplo, «influenciar», «incluir» e «incorporar»). Em seguida, os professores devem encorajar os alunos a escrever esta informação (na folha da actividade) e introduzir o conceito de radical. Podem referir, por exemplo: «A parte restante da palavra, isto é, sem o prefixo, é o radical. Neste exemplo, o radical é, então, “feliz”. “Feliz” significa sentir felicidade e bem-estar. Vamos escrever também essa informação?» Posteriormente, os professores devem explicar como a adição do prefixo altera o significado da palavra, referindo, por exemplo: «Adicionar o prefixo in à palavra «feliz» altera o significado do radical. Prestem atenção. Neste contexto, “in” significa falta ou ausência de algo. Então, “infeliz” significa não sentir felicidade e bem-estar.»

Quadro 1. Folha de análise morfológica (a preencher pelo professor)

Retorno correctivo. Se um aluno errar na pronúncia de uma palavra, os professores podem fornecer retorno correctivo, como, por exemplo: «Isso não está completamente correcto. Vamos rever a palavra, mais uma vez. Ouve: /i/ /n/ /f/ /e/ /l/ /i/ /z/. A que palavra dão estes sons origem?»

Monitorização. Os professores podem avaliar o progresso dos alunos a partir de uma lista de palavras que começam com o mesmo morfema. Para avaliar a precisão de leitura, podem pedir aos alunos que leiam as palavras em voz alta. Para avaliar o conhecimento dos significados, os professores podem pedir aos alunos que relacionem as palavras apresentadas na lista com o respectivo significado, ou ainda que identifiquem um sinónimo para cada palavra (por exemplo: «Destas opções, qual é o sinónimo do prefixo pré? Pós, durante ou antes?»).

Segunda parte — Ensino da fluência de leitura (5 minutos)

Teoria e pesquisa. A fluência de leitura constitui um indicador-chave da compreensão da leitura (e. g., Stevens et al., 2017; Therrien, 2004). De acordo com diversas teorias, como a Teoria da Eficiência Verbal (Perfetti, 1992), a ausência de fluência na leitura implica maior dispêndio de recursos cognitivos durante o processo de leitura do texto, o que, por sua vez, reduz a disponibilidade desses recursos para a compreensão.

De acordo com Daniel et al. (2024), os professores devem seleccionar um texto, de aproximadamente 150 a 250 palavras, que esteja de acordo com o nível de leitura do aluno, isto é, que o aluno seja capaz de o ler com, pelo menos, 95% de precisão.

Definição de objectivos. Os professores podem, por exemplo, dizer aos alunos: «Hoje vamos ler sobre [referir tema do texto]. O principal objetivo é praticar a fluência de leitura. Sabem o que isto significa? Significa que vamos praticar uma leitura precisa, isto é, sem erros, com velocidade e expressividade.»

Instrução explícita. Os professores podem começar por ler o texto em voz alta e pedir aos alunos que, além de acompanharem a leitura com uma cópia do texto, leiam as palavras omitidas. Um exemplo de instrução explícita seria: «Vou ler o texto e pedir-vos que acompanhem a leitura. Pode ser? Vou também omitir algumas palavras e pedir-vos que leiam essas palavras em voz alta. Vamos a isso?» Posteriormente, os alunos podem ler o texto em voz alta individualmente ou em pares.

Retorno correctivo. Se os alunos pronunciarem uma palavra incorrectamente, os professores podem dividir novamente a palavra em fonemas/sílabas e pedir aos alunos que repitam a leitura.

Monitorização. Uma prática comum para monitorizar o progresso dos alunos na leitura é avaliar a fluência. Pede-se aos alunos para lerem um trecho durante um minuto, de forma rápida e precisa. Os professores devem tomar nota de quaisquer erros cometidos pelos alunos, calcular o número de palavras lidas correctamente por minuto e registar essa informação semanalmente, a fim de monitorizar os progressos.

Terceira parte — Ensino da compreensão da leitura (15-20 minutos)

Teoria e pesquisa. Os alunos devem ser capazes de ler com proficiência e, consequentemente, compreender o que lêem. Neste sentido, a organização e a administração de actividades de compreensão, como responder a perguntas de interpretação, desempenham um papel fundamental.

Definição de objectivos. Os professores devem definir um objectivo para a interpretação do texto. Podem, por exemplo, dizer aos alunos: «Agora vamos explorar o texto para o compreendermos? Vamos a isso.»

Instrução explícita. Os textos demasiado longos ou extensos devem ser divididos em três partes, para os alunos reflectirem sobre eles. Após a leitura da primeira parte, realizada pelos professores, estes podem perguntar aos alunos: «De que fala esta parte do texto?» Os professores podem modelar a resposta, pensando em voz alta: «Esta parte aborda principalmente [referir o tema].» Em seguida, podem questionar: «Quais são as palavras-chave que descrevem esta parte?» Podem também explicar o papel das palavras-chave (por exemplo: «As palavras-chave destacam as ideias mais importantes do texto. Quando procuramos essas palavras, é mais fácil identificar o tema do texto e compreendê-lo»). Por fim, os professores podem incentivar os alunos a identificar e escrever a ideia principal do texto.

Após a leitura da segunda parte, realizada pelos alunos, os professores podem incentivar a leitura do texto em coro, assim como pedir aos alunos para identificarem palavras-chave e as usarem na identificação e escrita da ideia principal do texto.

Por último, após a leitura da terceira e última parte, os professores podem pedir aos alunos para relerem o texto em pares (cada aluno lê um parágrafo) e concluir a leitura do texto com perguntas de compreensão e realização de inferências.

Retorno correctivo. Quando os alunos se deparam com dificuldades na identificação e/ou escrita da ideia principal do texto, os professores podem, em primeiro lugar, verificar se os alunos identificaram as palavras-chave relevantes, ajudando-os nesse processo. Se necessário, os professores podem exemplificar como os alunos podem utilizar essas palavras-chave para formular a ideia principal.

Monitorização. Existem várias estratégias pelas quais os professores podem avaliar o progresso dos alunos na compreensão da leitura: i) o professor lê um trecho e, a cada sétima palavra, os alunos escolhem entre uma lista de três palavras qual faz mais sentido na frase; ii) os alunos lêem um trecho,  identificam as palavras-chave e escrevem a ideia principal do mesmo; iii) os alunos lêem frases isoladas e identificam se estão de acordo com o referido no texto.

Considerações finais

Os alunos com dificuldades de leitura podem enfrentar desafios em uma ou mais áreas da leitura, tornando essencial a adopção de uma abordagem de intervenção que vá ao encontro das suas necessidades de forma abrangente. Segundo Daniel et al. (2024), é exactamente neste contexto que as intervenções multicomponentes assumem um papel fundamental. Em resumo, os professores podem:

  1. ensinar as diferentes áreas da leitura de forma explícita — Os professores podem começar as sessões de apoio demonstrando a actividade a ser realizada, seguida da prática guiada, em lugar de começar pela realização independente.
  2. ajustar as sessões de apoio às necessidades dos alunos — As intervenções multicomponentes podem constituir uma resposta eficaz às dificuldades da leitura, se planeadas e adaptadas para responder às necessidades específicas dos alunos.
  3. incluir a análise morfológica das palavras — Os professores podem ensinar simultaneamente a leitura e o significado das palavras a partir da análise morfológica.
  4. estruturar actividades de compreensão da leitura — Os professores podem dividir o texto, principalmente se for extenso, para os alunos reflectirem sobre ele e o compreenderem.  Os professores podem também ensinar estratégias de compreensão da leitura, como, por exemplo, identificar palavras-chave e a ideia principal do texto.
  5. fornecer retorno correctivo — É fundamental fornecer aos alunos retorno correctivo quando estes enfrentam dificuldades como, por exemplo, na escrita da ideia principal do texto.
  6. monitorizar o progresso dos alunos — Para monitorizar o progresso dos alunos na leitura, recomenda-se a avaliação regular da precisão de leitura, do conhecimento do significado das palavras e da capacidade de compreensão.

Referências bibliográficas

Daniel, J., Barth, A., & Ankrum, E. (2024). Multicomponent reading intervention: A practitioner's guide. The Reading Teacher, 77(1), 473-484. https://doi.org/10.1002/trtr.2265

AUTORES

Célia Oliveira

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Célia Oliveira é Doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na Capacidade Memória Operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um Mestrado em Psicologia Clínica.

Atualmente é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da Aprendizagem, Atenção e Memória Humana.

Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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