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Introdução

O domínio da leitura constitui a pedra angular de todas as aprendizagens, pelo que o seu ensino assume um papel fundamental. Nas últimas décadas, diversos estudos têm examinado a eficácia dos métodos de instrução da leitura, apontando, com elevado consenso, para a superioridade do método sintético. Mas em que consiste exactamente este método? Segundo Ehri et al. (2001), este método aplica uma abordagem «da parte para o todo», na qual as crianças partem da descodificação das unidades mais pequenas da escrita (letras) para as unidades mais complexas (palavras). A partir desta abordagem, as crianças:

  1. adquirem conhecimento das correspondências grafo-fonológicas (ou correspondências letras-sons), isto é, aprendem que as letras ou combinações de letras representam os sons da fala, como por exemplo, a letra s representa o som /s/ na palavra «sapo» e a combinação de letras ch representa o som /ʃ/ na palavra «chave»;
  2.  aplicam o conhecimento das correspondências grafo-fonológicas, traduzindo letras e palavras em sons individuais (segmentação de sons), como, por exemplo, as letras que compõem a palavra «sol» correspondem, respectivamente, aos sons /s/, /ɔ/, /l/;
  3. combinam sons individuais para pronunciar palavras (combinação de sons). Por exemplo, combinam os sons /r/, /i/, /o/ para formar ou pronunciar a palavra «rio».

A combinação de sons requer o domínio da consciência fonológica, isto é, a consciência das unidades de som individuais de uma palavra e a capacidade de manipular essas representações sonoras (combiná-las ou misturá-las) (Pfost et al., 2019). Segundo diversos estudos (e. g., Melby-Lervåg et al., 2012; Shapiro & Solity, 2016), a consciência fonológica prediz a aprendizagem da leitura. No entanto, não existe uma distinção clara entre esta competência e o conhecimento fónico (isto é, a capacidade de transformar a escrita em sons), principalmente quando tem início o ensino formal da leitura.

Embora a maioria dos programas de intervenção fónicos inclua o ensino explícito das correspondências grafo-fonológicas, o mesmo não sucede em relação à consciência fonológica. Segundo Webber et al. (2024), uma vez que as crianças recebem ensino fónico, a consciência fonológica não é, salvo raras excepções, ensinada de forma explícita. Mas será que as crianças adquirirem consciência fonológica através do ensino fónico? De acordo com a literatura científica, uma vez que a descodificação de palavras escritas envolve a interacção com os sons da fala, é possível que a prática de descodificação constitua uma forma eficaz de treinar a consciência fonológica (ver, por exemplo, Perfetti et al., 1987). Porém, são diferentes as exigências das tarefas que envolvem a combinação de letras ou palavras impressas versus não-impressas. No primeiro caso, as crianças têm necessariamente de recorrer ao conhecimento das correspondências grafo-fonológicas e à consciência fonológica. Contudo, embora a presença de letras ou palavras impressas possa, por um lado, ajudar as crianças a combinar os respectivos sons com precisão, também pode, por outro, prejudicá-las na realização da tarefa. Por essa razão, é possível que o treino na combinação de sons, sem a presença ou observação de letras ou palavras impressas, beneficie a aprendizagem, ajudando as crianças a adquirir consciência fonológica para aprenderem a descodificar.

O estudo de Webber e colaboradores (2024)

Embora diversos estudos tenham verificado que a intervenção em consciência fonológica tem um efeito positivo na aprendizagem da leitura (Hulme et al., 2012; Mann & Foy, 2003; Pfost et al., 2019; Rvachew et al., 2004), nenhum estudo a comparou com outros tipos de intervenção. Assim, uma vez que não é claro como os professores podem apoiar as crianças com dificuldades nas fases iniciais da aprendizagem da leitura, Webber et al. (2024) compararam os efeitos de três tipos de intervenção com alunos do 1.o ano de escolaridade, nomeadamente: i) intervenção em consciência fonémica, ii) intervenção em conhecimento das correspondências grafo-fonológicas e iii) intervenção em descodificação. Os investigadores formularam as seguintes questões de pesquisa:

Questão 1. O tipo de intervenção influencia o desempenho dos alunos na leitura de palavras? Uma vez que, à data do estudo, os alunos estariam muito provavelmente a receber ensino em correspondências grafo-fonológicas e descodificação (como parte do ensino convencional), mas não a receber ensino em consciência fonémica, Webber et al. (2024) esperavam que o grupo de intervenção em consciência fonémica alcançasse um desempenho superior na leitura de palavras treinadas durante as sessões de apoio, comparativamente ao desempenho dos grupos de intervenção em correspondências grafo-fonológicas e em descodificação.

Questão 2. O efeito do tipo de intervenção é moderado pelo desempenho inicial em consciência fonémica ou conhecimento das correspondências grafo-fonológicas? Webber et al. (2024) esperavam que o maior benefício da intervenção em consciência fonémica seria moderado pelo desempenho inicial dos alunos em consciência fonémica e correspondências grafo-fonológicas.

Questão 3. O tipo de intervenção influencia o desempenho dos alunos em testes padronizados de consciência fonológica e conhecimento das correspondências grafo-fonológicas? Os investigadores esperavam que a intervenção em consciência fonémica beneficiasse o desempenho dos alunos nas tarefas de isolamento e eliminação de sons, enquanto a intervenção em correspondências grafo-fonológicas seria mais benéfica para as respectivas tarefas de correspondência.

Participaram no estudo 225 crianças do 1.o ano de escolaridade, com desempenho na leitura abaixo da média da turma. As crianças foram distribuídas aleatoriamente pelos três tipos de intervenção referidos, a saber: i) em consciência fonémica (75 crianças), ii) em correspondências grafo-fonológicas (75 crianças) e iii) em descodificação (75 crianças). Durante cinco semanas, foram administradas duas sessões de apoio semanais, com duração estimada de 20 minutos por sessão. As sessões foram conduzidas por um investigador que seguiu um guião específico em cada intervenção e utilizou a mesma lista de palavras em cada uma. Os alunos treinaram, em cada sessão, dois conjuntos de cinco palavras organizados por dificuldade crescente de correspondências grafo-fonológicas e frequência da palavra. Os conteúdos de cada intervenção são apresentados na Tabela 1. No final da intervenção, todas as crianças foram avaliadas em tarefas de leitura de palavras, isolamento de sons, eliminação de sons e conhecimento das correspondências grafo-fonológicas, a partir do «Teste de Avaliação de York para Leitura com Compreensão».

Tabela 1

Conteúdos leccionados em cada intervenção

Tipo de intervenção Conteúdos

Intervenção em consciência fonémica

  • Audição da leitura da palavra (sem observação da palavra escrita)
  • Combinação de fonemas
  • Segmentação de fonemas
  • Leitura de frases relacionadas com as imagens apresentadas

Intervenção em correspondências grafo-fonológicas

  • Observação da palavra impressa
  • Identificação do fonema correspondente a cada grafema da palavra-alvo
  • Leitura de frases relacionadas com as imagens apresentadas
Intervenção em descodificação
  • Observação da palavra impressa
  • Combinação de fonemas
  • Leitura de frases relacionadas com as imagens apresentadas

Principais resultados

  • O tipo de intervenção influencia o desempenho dos alunos na leitura de palavras?

De acordo com os resultados, a resposta a esta questão é não. Os alunos das três intervenções registaram desempenhos semelhantes na leitura. Assim, ensinar consciência fonémica, correspondências grafo-fonológicas ou descodificação mostrou ser igualmente eficaz e benéfico. Porém, segundo Webber et al. (2024), é importante considerar que a medida utilizada para avaliar o desempenho dos alunos na leitura de palavras pode não ter sido a mais adequada. A sensibilidade da tarefa de leitura de palavras poderia ser melhorada recorrendo a um conjunto mais diversificado de palavras, como, por exemplo, pseudopalavras com estrutura CVC (consoante-vogal-consoante). Além disso, a duração da intervenção pode ter sido demasiado curta. De acordo com os investigadores, a maioria dos estudos anteriores reporta intervenções que duraram vários meses.

  • O efeito do tipo de intervenção é moderado pelo desempenho inicial em consciência fonémica ou conhecimento das correspondências grafo-fonológicas?

A resposta a esta questão é também não. O desempenho inicial dos alunos nas tarefas de consciência fonémica e correspondências grafo-fonológicas não moderou o efeito das intervenções na leitura de palavras. Segundo Webber et al. (2024), este resultado é surpreendente, uma vez que seria esperado que o treino direccionado fosse mais benéfico para a aprendizagem da competência leccionada (e. g., os alunos com dificuldades em correspondências grafo-fonológicas beneficiariam mais de intervenção nesta área). Porém, tal como Carroll et al. (2016) destacam, uma vez que as competências de pré-leitura estão intercorrelacionadas, é possível que, independentemente do tipo de intervenção, o ensino em consciência fonémica, correspondências grafo-fonológicas ou descodificação promova a aquisição destas competências.

  • O tipo de intervenção influencia o desempenho dos alunos em testes padronizados de consciência fonológica e conhecimento das correspondências grafo-fonológicas?

De acordo com os resultados, a resposta a esta questão é sim. No entanto, ao contrário do que Webber et al. (2024) esperavam, a intervenção em descodificação foi a que registou um efeito mais significativo no isolamento de sons (consciência fonológica). Apesar disso, este resultado vai ao encontro do estudo de Hatcher et al. (2004), que permitiu concluir que a intervenção em consciência fonémica emparelhada com o treino de leitura beneficia o desenvolvimento da consciência fonológica. Além disso, este resultado pode ser interpretado de acordo com duas teorias-chave. Primeiro, existe uma relação recíproca entre consciência fonológica e conhecimento de letras (e. g., Cunningham et al., 2021). Embora todas as condições de intervenção tivessem incluído pelo menos uma destas componentes, apenas a intervenção em descodificação incluiu ambas. Segundo, as pistas ortográficas apoiam a realização de tarefas de consciência fonológica. Ao contrário da intervenção em consciência fonémica, na intervenção em descodificação os alunos tiveram acesso à forma escrita das palavras enquanto praticavam a combinação dos sons que as compunham. Embora as palavras utilizadas no teste de isolamento de sons fossem diferentes das palavras treinadas durante as sessões de intervenção, os exercícios de combinação de sons, juntamente com a observação das palavras impressas, podem ter apoiado os alunos na adopção de estratégias semelhantes de visualização de letras durante a tarefa de isolamento de sons (Deacon et al., 2018). Por último, é importante referir que o efeito foi significativo apenas no isolamento de sons. Na eliminação de sons, o mesmo não se verificou. Muter et al. (2004) também verificaram um baixo desempenho dos alunos do 1.o ano de escolaridade na eliminação de sons. De acordo com Carroll et al. (2003), este resultado pode dever-se ao facto de esta tarefa requerer um nível de consciência fonémica que as crianças nas fases inicias da aprendizagem da leitura provavelmente ainda não desenvolveram.

Conclusão e implicações no ensino da leitura

Em síntese, o estudo de Webber et al. (2024) oferece contributos importantes para o ensino da leitura, ao sugerir que os professores podem adoptar diferentes tipos de intervenção para apoiar as crianças com dificuldades na aprendizagem inicial. Com efeito, os diferentes tipos de intervenção (em consciência fonémica, correspondências grafo-fonológicas e descodificação) produziram um efeito semelhante e positivo no desempenho dos alunos na leitura de palavras. Além disso, a intervenção em descodificação demonstrou um efeito mais significativo em tarefas de isolamento de sons, comparativamente aos efeitos do treino em consciência fonémica e correspondências grafo-fonológicas. Mais especificamente, o treino na combinação de sons, conjugado com o acesso à forma escrita ou impressa da palavra, mostrou produzir os resultados mais benéficos. De acordo com a literatura, este tipo de intervenção tem a vantagem de familiarizar os alunos quer com a forma escrita, quer com a forma falada das palavras, e, além disso, pode ser facilmente combinada com o ensino explícito de vocabulário.

AUTORES

Célia Oliveira

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Célia Oliveira é Doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na Capacidade Memória Operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um Mestrado em Psicologia Clínica.

Atualmente é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da Aprendizagem, Atenção e Memória Humana.

Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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