Introdução
O domínio da caligrafia é um processo longo e complexo. Requer, por um lado, a aquisição de fluência, definida como a capacidade de escrever ou copiar um número significativo de letras e/ou palavras num período limitado, e, por outro, a aquisição de legibilidade, definida como a capacidade de escrever de forma clara, organizada e perceptível (Santangelo & Graham, 2016). De acordo com a literatura científica, a qualidade da caligrafia, composta pela fluência e pela legibilidade, é influenciada por a) factores intrínsecos, isto é, factores relacionados com as capacidades das crianças, como as habilidades de motricidade fina e de coordenação visuomotora (e.g., Lu et al., 2024; Seo, 2018); e por b) factores extrínsecos, intimamente relacionados com o ambiente de aprendizagem, como por exemplo, o tipo de folha utilizado nos exercícios de escrita (Baraud et al., 2018; Gerde et al., 2019).
O impacto das folhas pautadas na qualidade da caligrafia é maior do que o das folhas em branco?
Diversos investigadores têm concluído que o tipo de folha utilizado na aprendizagem da escrita varia significativamente entre professores, anos de escolaridade e países (Asher, 2006; Bara et al., 2011; Baraud et al., 2018; Gerde et al., 2019 Graham et al., 2008). Por exemplo, num estudo conduzido em França com professores do jardim-de-infância e do primeiro ano, Baraud et al. (2018) verificaram que apenas 50% e 58% dos professores, respectivamente, consideraram importante a utilização de folhas pautadas nos exercícios de escrita. Mas será que o impacto das folhas pautadas na caligrafia é diferente do das folhas em branco? Segundo Guilbert e Fernandez (2024), apenas três estudos parecem ter explorado de que forma a qualidade da caligrafia varia de acordo com o tipo de folha nos primeiros anos de escolaridade. Os resultados mostraram que:
a) na fase inicial de aprendizagem da escrita, o uso de folhas pautadas não tem um impacto significativo na legibilidade (Daly et al., 2003; Fitzpatrick et al., 2013) (Fitzpatrick et al., 2013) comparativamente ao uso defolhas em branco;
b) as folhas pautadas aumentam a legibilidade da caligrafia de crianças mais velhas (9 anos); em contrapartida, crianças mais novas (6 anos) escrevem de forma mais legível em folhas em branco (Lindsay & McLennan, 1983).
c) na aprendizagem inicial, as crianças demoram mais tempo para desenhar os traços descendentes das letras (como os necessários para a escrita de «l», «p» e «q») quando escrevem em folhas pautadas comparativamente à escrita em folhas em branco e, além disso, cometem um menor número de inversões na velocidade da escrita (Fitzpatrick et al., 2013). Segundo os investigadores, estes resultados sugerem que o uso de folhas pautadas pode constituir uma estratégia eficaz na promoção de movimentos de escrita mais controlados, ajudando as crianças a movimentar o lápis de forma mais estável e precisa, especialmente nas fases iniciais da aprendizagem.
As habilidades de motricidade fina e de coordenação visuomotora moderam o impacto das folhas pautadas na qualidade da caligrafia?
As habilidades de motricidade fina, que envolvem o controlo e a coordenação da musculatura distal das mãos e dos dedos, desempenham um papel crítico na aprendizagem da escrita (Seo, 2018; Volman et al., 2006). Porquê? A resposta é simples. As habilidades de motricidade fina são fundamentais para que as crianças consigam segurar e manipular objectos, como canetas, lápis e papel, permitindo-lhes realizar movimentos precisos e controlados durante a escrita. Por exemplo, Lê et al. (2021) verificaram que a escrita em folhas pautadas, cujo espaçamento entre linhas é geralmente igual ou menor que 2 mm a 3 mm, requer movimentos precisos de pequena amplitude, o que pode ser um desafio para as crianças em termos de destreza e de coordenação motora. Por essa razão, as crianças com habilidades motoras finas menos desenvolvidas podem ter mais dificuldade em controlar os movimentos do lápis e em alinhar correctamente as letras dentro das linhas, tornando a tarefa de escrita mais exigente.
As habilidades de motricidade fina são fundamentais para que as crianças consigam segurar e manipular canetas, lápis e papel, permitindo-lhes realizar movimentos precisos e controlados durante a escrita
À semelhança das habilidades de motricidade fina, as habilidades de coordenação visuomotora, definidas como a capacidade de integrar a informação visual com os movimentos das mãos e dos dedos, têm um impacto importante na aprendizagem da escrita (Kaiser et al., 2009; Lee, 2022). Sem estas habilidades seria difícil, ou até impossível, executar tarefas como traçar letras com precisão, alinhar a escrita nas linhas do papel, ajustar a pressão do lápis e produzir a forma correcta no lugar certo da folha (Lu et al., 2024). Segundo a literatura científica, as folhas pautadas oferecem informações visuais e espaciais adicionais, como a linha de base, as interlinhas e as margens, que podem facilitar substancialmente o ajuste dos movimentos topocinéticos (necessários para posicionar correctamente a mão e o lápis, garantindo a orientação e o alinhamento adequado das letras) e morfocinéticos (necessários para traçar as formas das letras de modo legível). Neste sentido, é possível que as crianças com habilidades de coordenação visuomotora mais desenvolvidas possam tirar mais proveito das folhas pautadas do que das folhas em branco.
Estudo de Guilbert e Fernandez
A compreensão dos factores (intrínsecos e extrínsecos) que influenciam a aprendizagem da escrita desempenha um papel fundamental no desenvolvimento e adopção de estratégias pedagógicas para um ensino eficaz. Com base na investigação apresentada, Guilbert e Fernandez (2024) procuraram aprofundar o conhecimento sobre o impacto dos materiais de escrita, a partir da resposta às seguintes perguntas:
- A qualidade da caligrafia (legibilidade e fluência) é superior quando os alunos escrevem em folhas pautadas, em comparação com folhas em branco (sem linhas)?
- As habilidades de motricidade fina e de coordenação visuomotora moderam o (potencial) impacto das folhas pautadas na escrita?
Participaram no estudo 34 alunos (média de idades de 8 anos e 11 meses) de duas turmas do terceiro ano de escolaridade, de uma escola primária localizada em Paris, França. De acordo com o programa escolar francês (Ministério da Educação Nacional e Juventude, 2015), os alunos aprenderam a escrever exclusivamente em letra cursiva.
Os alunos foram avaliados em termos de:
Habilidades de escrita: avaliadas a partir da fluência (medida pelo número de caracteres escritos por cada aluno num período de cinco minutos) e na legibilidade (avaliada com base na cópia de um texto durante o mesmo intervalo de tempo). Os alunos copiaram o mesmo texto em dois tipos de folha: pautada (Imagem 1) e em branco. Digitalizaram-se as cópias, e as linhas das folhas pautadas foram removidas através de um software de edição gráfica, para que todos os textos aparentassem ter sido escritos numa folha sem linhas. Posteriormente, dois autores analisaram a qualidade da caligrafia com base em 13 critérios que abrangem componentes topocinéticos e morfocinéticos, nomeadamente: tamanho das letras; alargamento da margem esquerda; desalinhamento das palavras; espaço insuficiente entre as palavras; escrita desorganizada; irregularidades nas junções dos traços; traço de escrita instável, hesitações e tremores; e análise das letras considerando aspectos como colisão, tamanho inconsistente, altura incorrecta, distorção, formas ambíguas, e correcção da forma. Pontuações mais altas indicaram mais erros e uma qualidade de caligrafia inferior. A soma das 13 pontuações resultou numa pontuação total da qualidade da caligrafia, que variava entre 0 (melhor) e 65 (pior).
Imagem 1. Folha Pautada
Habilidades de motricidade fina e de coordenação visuomotora: A avaliação das habilidades de motricidade fina e de coordenação visuomotora realizou-se através de duas tarefas:
- Tarefa de toque, que consistiu em fazer um conjunto de toques repetitivos e sequenciais com a ponta dos dedos, imitando, o mais depressa possível, uma série de movimentos realizados pelo avaliador. O desempenho mediu-se pelo tempo necessário para completar as sequências correctamente.
- Tarefa de precisão visuomotora, que envolveu o desenho de uma linha, de forma rápida e precisa, sem tocar nas margens da folha. Nesta tarefa, pontuações mais baixas indicaram maior dificuldade nas habilidades de coordenação mão-olho e menor precisão no desenho.
- Os alunos realizaram cada tarefa a partir das mãos dominante e não-dominante.
A avaliação decorreu ao longo de três dias. No primeiro dia, os alunos realizaram as tarefas de motricidade fina e de coordenação visuomotora. No segundo dia, dedicaram-se à tarefa de escrita nas respectivas salas de aula, sendo que, em cada sala, metade dos alunos copiou o texto numa folha em branco e a outra metade numa folha pautada. No terceiro e último dia, os alunos repetiram a tarefa de escrita, mas utilizando o tipo de folha alternativo. Assim, contrabalançou-se entre os participantes a ordem de apresentação das duas condições (folha pautada e em branco).
Principais resultados
Impacto das folhas pautadas na legibilidade
As crianças do terceiro ano de escolaridade escreveram de forma mais legível em folhas pautadas do que em folhas em branco, e os aspectos que mais beneficiaram da presença de linhas na escrita foram o tamanho das letras e o alinhamento das palavras. O que significa isto, exactamente? Em termos simples, significa que quando as crianças escrevem em folhas pautadas, conseguem manter um tamanho de letra uniforme e proporcional, com um alinhamento horizontal consistente, sem oscilações para cima ou para baixo. De acordo com a literatura científica, estes resultados não são surpreendentes. Antes dos 10 anos, as crianças dependem de informações visuais para controlar a disposição espacial do traço e os movimentos contínuos envolvidos no desenho das letras (Danna & Velay, 2015; Palmis et al., 2017). Assim, as folhas pautadas oferecem pistas visuais adicionais, como a linha de base e as interlinhas, que ajudam as crianças mais novas a regular o tamanho das letras, assim como o alinhamento das palavras na folha, contribuindo para uma escrita mais organizada e legível.
Impacto das folhas pautadas na fluência
Ao contrário do que se verificou na legibilidade, o tipo de folha não influenciou a velocidade de escrita das crianças. Segundo os investigadores, este resultado pode dever-se aos seguintes factores: a) sensibilidade da medida — o número de letras utilizado para medir a fluência de escrita pode não ter sido tão sensível quanto outras medidas de escrita, como o número de inversões que captam variações na velocidade, induzidas pelo tipo de folha; b) experiência dos alunos — os alunos tinham, em média, mais dois anos de experiência em escrita do que os que participaram em estudos anteriores (Chartrel & Vinter, 2008; Fitzpatrick et al., 2013), permitindo-lhes dominar uma escrita automatizada, menos dependente das informações visuais fornecidas pelas folhas pautadas; c) equilíbrio entre velocidade e legibilidade — quando as crianças se esforçam para escrever de forma mais legível, a velocidade da escrita tende a diminuir. De acordo com a investigação disponível, as informações visuo-espaciais oferecidas pelas folhas pautadas visam melhorar as proporções das letras e a organização espacial da página. Assim, ao escrever neste suporte específico, as crianças podem prestar mais atenção à legibilidade do que à fluência. Por outras palavras, o papel pautado pode fazer com que as crianças priorizem a qualidade visual da escrita em vez da rapidez, o que pode explicar a razão pela qual este tipo de papel não influenciou significativamente a fluência da escrita.
Influência das habilidades de motricidade fina e de coordenação visuomotora no impacto das folhas pautadas na qualidade da caligrafia
O desempenho das crianças nas tarefas de toque e de precisão visuomotora não moderou o efeito das folhas pautadas na qualidade da caligrafia, sugerindo que a presença de linhas beneficia os alunos de forma semelhante, independentemente das suas habilidades de motricidade fina e de coordenação visuomotora. Estes resultados sugerem que, no terceiro ano de escolaridade, os alunos já têm habilidades visuo-motoras e de motricidade fina suficientes para lidar com as restrições das folhas pautadas. No entanto, uma vez que as habilidades de motricidade fina e de coordenação visuomotora das crianças mais novas ainda não se encontram totalmente desenvolvidas, é possível que o impacto do papel pautado seja diferente em anos escolares inferiores.
Principais ideias a reter
Os resultados mostram que o uso de folhas pautadas ajuda os alunos a alcançar uma caligrafia legível, promovendo essencialmente maior consistência no tamanho das letras e um alinhamento mais preciso das palavras, aspectos fundamentais para uma escrita clara e estruturada. Além disso, os resultados mostram que as folhas pautadas beneficiam os alunos do terceiro ano, independentemente das suas habilidades de motricidade fina e de coordenação visuomotora. Assim, embora as folhas pautadas não influenciem significativamente todos os componentes topocinéticos e morfocinéticos da escrita, constituem uma ferramenta pedagógica eficaz para apoiar o desenvolvimento da caligrafia.
Este texto é um resumo do artigo «The use of lined paper in child education: impact of line presence on handwriting quality», disponível aqui.
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AUTORES
Célia Oliveira
Soraia Araújo