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Ler proficientemente: Os processos envolvidos na leitura

O conhecimento fónico assume um papel-chave na leitura, mesmo quando os leitores dominam a relação entre as formas ortográficas e sonoras das palavras. No entanto, este conhecimento, não é, por si só, suficiente para adquirir a capacidade de ler proficientemente. Se o conhecimento da relação letras-sons não é suficiente, o que mais é necessário para adquirir uma leitura proficiente e, consequentemente, retirar significado daquilo que se lê?

Os leitores, para lerem proficientemente, precisam de aceder, directamente, ao significado das palavras, unicamente através da respectiva grafia, sem a obrigatoriedade de recorrerem à fonologia. Se, porventura, a leitura ocorresse por intermédio da descodificação alfabética (ou das correspondências letras-sons), tornar-se-ia um processo lento, com uma grande exigência atencional. Tal não seria, claramente, ideal, para uma leitura rápida e eficiente.

Mas, como podem os leitores aceder directamente ao significado das palavras? A resposta a esta questão é relativamente simples: os leitores precisam de adquirir experiência. E porquê? À medida que os leitores ganham experiência na leitura, a dependência da descodificação alfabética diminui.

Isto é, os leitores passam de leitores inexperientes, que lêem, principalmente, por intermédio das correspondências letras-sons, para leitores experientes, que reconhecem palavras de forma rápida e automática, uma vez que acedem, directamente, ao significado das palavras escritas (ou seja, sem recorrerem à descodificação letras-sons). Contudo, é fundamental ter presente que a capacidade de ler proficientemente não surge de forma natural e instantânea. Envolve um processo de desenvolvimento e de (auto)aprendizagem pelo qual os leitores têm de passar.

 

Desenvolvimento e (auto)aprendizagem das competências necessárias para uma leitura proficiente

De acordo com Castles et al. (2018), há três aspectos muito importantes que se encontram relacionados com a aquisição e desenvolvimento da proficiência na leitura:

  • Auto-aprendizagem durante a leitura independente.

A teoria mais influente acerca da transição para a leitura proficiente parece ser a hipótese de auto-aprendizagem de Share (1995), na qual a descodificação alfabética é considerada a condição sine qua non da aprendizagem da leitura. Segundo esta teoria, os leitores, ao envolverem-se no processo de transformação de uma sequência de letras no respectivo som, para além de se centrarem nas letras que constituem cada palavra, têm a oportunidade de adquirir conhecimento ortográfico. Isto é, obter conhecimento sobre o significado das palavras, bem como sobre as regularidades ortográficas do sistema de escrita.

Este conhecimento fica, por sua vez, disponível para encontros futuros com as palavras aprendidas, permitindo aos leitores o seu reconhecimento automático, diminuindo, assim, a dependência da descodificação alfabética. Deste modo, mediante a combinação da descodificação letras- sons e da exposição repetida, os leitores podem aprender por si mesmos durante a leitura independente.

  • Adquirir conhecimento através da exposição.

Perfetti (2007) responde a uma questão à qual a hipótese de auto-aprendizagem não dá resposta: O que muda, no conhecimento ortográfico dos leitores, em resultado do contacto com novas palavras? Segundo o autor, a resposta é a seguinte: a qualidade lexical. A qualidade lexical é, muito simplesmente, a extensão em que a representação mental armazenada de uma palavra, especifica a sua forma ortográfica e significado, de um modo preciso e flexível.

A precisão desta representação mental, denominada conhecimento da grafia exacta, assume um papel muito importante na leitura, uma vez que permite que os leitores distingam, correctamente, uma palavra, de palavras ortograficamente semelhantes, e acedam, directamente, ao seu significado (por exemplo, distinguir fábrica de fabrica e secretária de secretaria).

A importância da qualidade lexical na transição para a leitura proficiente é indiscutível. Como Perfetti (2007) e Ehri (2005) referem, quando a qualidade lexical de um leitor é alta, os seus recursos cognitivos são direccionados para a compreensão da leitura, uma vez que as palavras escritas são reconhecidas de forma rápida, automática e com o mínimo de esforço consciente.

Pelo contrário, quando a qualidade lexical é baixa, os recursos cognitivos do leitor são direccionados para a tarefa de reconhecimento de palavras, ficando a compreensão da leitura comprometida.

Os leitores desenvolvem, através da exposição repetida, mecanismos de reconhecimento de palavras especializados e eficientes, optimizados para a compreensão da leitura. Dada a importância desses mecanismos automáticos na transição para a leitura proficiente, surgem duas questões muito relevantes: O que promove o desenvolvimento da leitura proficiente? Simplesmente, o número de vezes que um leitor teve contacto com uma palavra específica? Autores como Mol e Bus (2011) referem existir uma associação positiva entre a exposição do leitor a uma determinada palavra e a sua capacidade de a ler correctamente.

Porém, a resposta a estas questões parece ser mais complexa, baseando-se em considerações acerca da natureza do sistema de escrita. Por exemplo, consideremos a palavra carro. A discriminação bem-sucedida desta palavra, de outras que diferem em apenas uma letra, como as palavras corro, jarro, barro e varro, requer que o leitor desenvolva um mecanismo de reconhecimento muito preciso, que atenda a todas as sequências de letras. Caso contrário, a precisão da identificação da palavra, bem como o acesso ao seu significado, ficariam comprometidos.

Consideremos agora a palavra peixe. Em Português, poucas palavras de cinco letras diferem desta em apenas uma letra, tornando a tarefa de discriminação, significativamente mais fácil. Por esta razão, um mecanismo de reconhecimento lexical para peixe, pode ser menos necessário do que um mecanismo de reconhecimento lexical para carro.

Apesar dos avanços na literatura, não há, ainda, consenso acerca de qual dos factores caracteriza mais precisamente a acumulação de experiência lexical. No entanto, a idade, a diversidade semântica e contextual e a frequência cumulativa (isto é, o número de vezes que um leitor esteve em contacto com uma determinada palavra desde que aprendeu a ler), têm um impacto significativo no desempenho da leitura.

 

  • Adquirir conhecimento morfológico. 

A aprendizagem da relação entre a grafia e o significado das palavras constitui um processo muito importante no desenvolvimento da proficiência na leitura. Esta aprendizagem deve ocorrer, para a grande maioria das palavras escritas, às quais os leitores mais novos são expostos durante os primeiros anos de escolaridade, de item para item. Qual a razão para essa aprendizagem dever ser assim? A resposta a esta questão é muito simples: as primeiras palavras que os leitores mais novos aprendem a ler são, geralmente, constituídas por um morfema.

Assim, a relação entre a ortografia e o significado das palavras constituídas por apenas um morfema, deve ser aprendida individualmente.

Ao contrário das relações sistemáticas entre a grafia e o som das palavras, não existe uma relação entre a grafia e o significado das palavras, quando estas são constituídas por apenas um morfema. Embora palavras ortograficamente semelhantes, como mar, par e lar, sejam idênticas, também no som, não têm um significado semelhante. Isto significa que aprender o significado de uma palavra não ajuda a aprender o significado de outra. Assim, a relação entre a ortografia e o significado das palavras constituídas por apenas um morfema, deve ser aprendida individualmente.

No caso das palavras com mais de um morfema (a palavra felizmente, por exemplo, é constituída por dois morfemas: {feliz} + {- mente}), existem regularidades entre a grafia e o significado.

Quando os leitores começam a adquirir experiência com palavras morfologicamente complexas, aprendem que grupos específicos de letras se encontram associados a significados próprios. Por outras palavras, os leitores aprendem a reconhecer e aceder ao significado das palavras a partir da análise dos respectivos morfemas (por exemplo, os leitores reconhecem que a palavra infeliz tem uma conotação negativa devido ao morfema {in-}).

Embora as evidências sugiram que o conhecimento morfológico está associado ao desempenho na leitura, são necessárias mais investigações para compreender, precisamente, como o processo de leitura é influenciado por este conhecimento.

No entanto, sabe-se que: (a) as crianças com idades entre os 7 e os 11 anos analisam, até certo ponto, a estrutura morfológica das sequências de letras, durante as tarefas de reconhecimento de palavras; (b) as crianças lêem mais rapidamente pseudo-palavras com estrutura morfológica; e (c) as crianças lêem mais rapidamente palavras morfologicamente complexas muito frequentes, como a palavra normalmente, do que palavras que não sejam tão comuns, como a palavra avidamente.

 

Sugestões de actividades no ensino da leitura:

  1. Recordar as palavras aprendidas: Os cartões de memória (com palavras simples para as crianças nomearem) e as folhas de actividades (com listas de palavras para as crianças treinarem em casa) são duas estratégias que promovem a independência na leitura. Quando as crianças conseguem ler, sozinhas, textos simples, a sua exposição às palavras escritas aumenta rápida e significativamente, o que é um grande passo para a aquisição de uma leitura proficiente.
  2. Ensino da morfologia: As crianças podem adquirir conhecimento morfológico implicitamente, através da linguagem oral e da experiência de leitura. Porém, a importância do ensino explícito da morfologia é irrefutável. Actividades de escuta e narração de histórias são duas estratégias que poderão ajudar as crianças a assimilar a relação entre a ortografia e o significado das palavras.
  3. Expor e motivar as crianças para a leitura: O caminho mais eficaz para a aquisição de uma leitura proficiente é a experiência: as crianças precisam de ler o máximo de palavras possível, com a maior frequência possível. Os professores podem, neste sentido, procurar promover o máximo de exposição à leitura que conseguirem, durante as actividades em sala de aula, bem como nos trabalhos de casa. No entanto, os benefícios da exposição à leitura, nas actividades desenvolvidas pelos professores, são mínimos, quando comparados com os benefícios que as crianças podem obter na leitura independente. Willingham (2017) fornece duas recomendações potencialmente eficazes para o aumento da motivação para a leitura: (a) as crianças valorizam mais a actividade de leitura se tiverem a oportunidade de ler textos que são do seu interesse, que os pares estejam a ler, ou que tenham alguma utilidade prática para elas (por exemplo, livros de desporto ou sobre algum filme); e (b) quando os materiais de leitura estão guardados em locais em que as crianças os consigam ver, a probabilidade de estas pegarem num livro, é significativamente maior.

PRINCIPAIS IDEIAS A RETER:

  1. Embora o conhecimento fónico assuma um papel-chave na leitura, este não é, por si só, suficiente para os leitores adquirirem uma leitura proficiente. Eles precisam de reconhecer palavras escritas de forma rápida e automática, acedendo, directamente, ao seu significado.
  2. A experiência de leitura, a exposição repetida e a aquisição de conhecimento morfológico, constituem três aspectos muito importantes, directamente relacionados com a aquisição e desenvolvimento da proficiência na leitura.

Referência Bibliográfica: Castles, A., Rastle, K., & Nation, K. (2018). Ending the reading wars: Reading acquisition from novice to expert. Psychological Science in the Public Interest, 19(1), 5-51.

Tornar-se um leitor proficiente - ir além do conhecimento fónico

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AUTORES

João Lopes

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João Arménio Lamego Lopes dirige o projeto AaZ – Ler Melhor, Saber Mais. Licenciado em Psicologia pela Universidade do Porto (1981), Mestre em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento (Universidade do Porto, 1991) e doutorado em Psicologia da Educação pela Universidade do Minho (1996). Professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho desde 1995.

Professor Associado com Agregação, da mesma Universidade (2004). Director do Departamento de Psicologia Aplicada (2015-2019) e do Mestrado em Temas de Psicologia da Educação da UM. Director do Programa de Doutoramento em Psicologia Aplicada para os países da CPLP. Presidente do Conselho Cientifico-Pedagógico da Formação Contínua de professores (2014-2018), representante de Portugal no CERI-OCDE (2015-2017) e membro do Conselho Geral do IAVE (2013-2018).

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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