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Introdução

As crianças iniciam a escola com diferenças consideráveis nas habilidades académicas iniciais, especialmente na leitura e na matemática (Napoli & Purpura, 2018). Essas diferenças têm sido investigadas com base na avaliação do papel das capacidades cognitivas precoces e das características do ambiente familiar (e.g., nível de escolaridade dos pais e actividades entre pais e filhos). Contudo, até ao momento, a maioria dos estudos analisou populações típicas ou crianças em risco de desenvolver dificuldades de aprendizagem de leitura e/ou de matemática (Peters et al., 2020; Viesel-Nordmeyer et al., 2023). No entanto, existe um menor conhecimento acerca da influência dos factores cognitivos e familiares na aprendizagem precoce.

Aprendizagem precoce da leitura e matemática

Existe uma forte correlação entre o desempenho das crianças na leitura e na matemática quando estas habilidades são desenvolvidas precocemente (e.g., van Bergen et al., 2014; Zhang & Peng, 2023). Estudos recentes destacam a influência entre as habilidades envolvidas nestas duas matérias. Por exemplo, o vocabulário, além de promover o desenvolvimento da linguagem, também está relacionado com a aprendizagem da matemática.  Da mesma forma, a consciência fonológica, associada à aprendizagem da leitura, também prediz a aprendizagem da matemática. De igual modo, a velocidade de nomeação rápida, relacionada com a leitura, também foi identificada como um preditor do desempenho matemático, especialmente em tarefas que exigem a recuperação automática de factos matemáticos (e.g., Koponen et al., 2017; Peng et al., 2020). Outro factor importante na aquisição da leitura e da matemática é o conhecimento simbólico, uma vez que o reconhecimento de números e letras está fortemente associado ao desenvolvimento infantil, sugerindo que as capacidades simbólicas podem ser preditoras do desempenho na leitura (e.g., Austin et al., 2011; Bergman Deitcher et al., 2021). Além disso, capacidades cognitivas gerais, como a memória a curto prazo e a memória de trabalho, desempenham um papel fundamental na aprendizagem da leitura e da matemática. Enquanto a leitura está mais associada à memória a curto prazo verbal, a matemática depende tanto da memória a curto prazo verbal como da memória a curto prazo visuoespacial. Além disso, a inteligência fluida também se associa ao desempenho nas duas áreas, com maior impacto na matemática (e.g., De Smedt, 2022; Peng et al., 2019). (cf. figura 1)

Figura 1. Preditores cognitivos na aprendizagem precoce de leitura e matemática

Ambiente familiar

O ambiente familiar influencia a aprendizagem inicial da leitura e da matemática, destacando-se factores como o nível socioeconómico, actividades parentais e expectativas dos pais. Especificamente, a investigação indica que o nível socioeconómico dos pais influencia as habilidades matemáticas das crianças, mediado pelo desenvolvimento da linguagem (e.g., Peng et al., 2019; Slusser et al. 2019). De igual modo, actividades informais, como contar histórias, estimulam capacidades gerais de linguagem, enquanto actividades formais, como leitura de livros educativos e prática de cálculos, estão mais associadas à aprendizagem específica da leitura e da matemática (e.g., Daucourt et al., 2021; Sénéchal & LeFevre, 2002).

Estudo de Kapteijns e colaboradores (2025): aquisição precoce da leitura e matemática

O estudo de Kapteijns e colaboradores (2025) centrou-se em «aprendentes precoces», que adquiriram habilidades de leitura e matemática antes do início da escolaridade formal.

A investigação teve três objectivos principais:

  1. Identificar os preditores cognitivos e do ambiente familiar para a leitura precoce;
  2. Identificar os preditores cognitivos e do ambiente familiar para a aprendizagem precoce da matemática;
  3. Analisar os preditores das habilidades aplicadas à matemática, para determinar as capacidades matemáticas das crianças independentemente do conhecimento ou experiência com problemas aritméticos.

Participaram neste estudo 222 crianças, de 12 jardins de infância, com idades entre os quatro e os seis anos (com uma média de cinco anos e cinco meses).

A leitura e a matemática precoces foram estudadas em simultâneo, para avaliar a sua evolução conjunta. Para a análise dos respectivos preditores, os autores determinaram a contribuição dos seguintes modelos estatísticos:

Modelo familiar

Análise da contribuição de variáveis como: actividades familiares relacionadas com literacia e numeracia, nível de escolaridade dos pais, expectativas sobre literacia e numeracia, e interesse dos pais pela leitura.

Modelo cognitivo

Análise da contribuição de capacidades cognitivas de domínio específico e de domínio geral, tais como: habilidades específicas de leitura e matemática, conhecimento fonológico, vocabulário ou memória de trabalho verbal (cf. tabela 1).

Tabela 1. Instrumentos

Principais resultados

Identificar os preditores cognitivos e do ambiente familiar para a leitura precoce

Modelo familiar. A idade da criança, as expectativas parentais e as actividades formais de leitura foram preditores significativos da habilidade de leitura precoce. Actividades informais tiveram um efeito negativo.

Modelo cognitivo. O conhecimento das letras teve a maior influência, enquanto o vocabulário e a consciência fonológica tiveram contribuições fracas. 

Especificamente para o desempenho na fluência de leitura, o conhecimento das letras (modelo cognitivo) revelou ser o maior preditor, enquanto variáveis do ambiente familiar e capacidades cognitivas gerais não apresentaram efeitos determinantes.

Identificar os preditores cognitivos e do ambiente familiar para a aprendizagem precoce da matemática

Modelo familiar. Apenas a idade (incluída como preditor de controlo em ambos os modelos) e as actividades informais de matemática foram preditores significativos da aprendizagem precoce.  

Modelo cognitivo. As habilidades de contagem e a comparação simbólica foram preditores significativos, ao contrário da idade e da estimativa na recta numérica.

O modelo cognitivo apresentou maior poder explicativo da aprendizagem precoce da matemática comparativamente ao modelo familiar.

Especificamente para o desempenho nas tarefas de aritmética, a capacidade de comparação simbólica mostrou ser o maior preditor.

Analisar os preditores para as habilidades aplicadas à matemática

Modelo familiar. A idade, educação parental, expectativas parentais e actividades informais de matemática tiveram contribuições significativas.

Modelo cognitivo. A contagem e a comparação simbólica memória revelaram-se preditores cognitivos significativos, seguidos, com menor impacto, da memória a curto prazo visuoespacial e o raciocínio não verbal.

Globalmente, a contagem e a comparação simbólica tiveram forte contribuição para explicar as habilidades aplicadas à matemática, assim como o vocabulário (uma habilidade específica da leitura). O raciocínio não verbal e actividades informais de matemática no ambiente familiar também apresentaram contribuições, ainda que menores.

 

Este texto é um resumo do artigo «Cognitive and home predictors of precocious reading and math before formal education», disponível aqui.

Referências bibliográficas

Austin, A. M. B., Blevins-Knabe, B., Ota, C., Rowe, T., & Lindauer, S. L. K. (2011). Mediators of preschoolers’ early mathematics concepts. Early Child Development and Care, 181(9), 1181-1198. https://doi.org/10.1080/03004430.2010.520711

Bergman Deitcher, D., Aram, D., & Besser-Biron, S. (2021). A broad view of precocious reading. Journal of Research in Reading, 44(3), 554–573. https://doi.org/10.1111/1467-9817.12355

Daucourt, M. C., Napoli, A. R., Quinn, J. M., Wood, S. G., & Hart, S. A. (2021). The home math environment and math achievement: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 147(6), 565-596. https://doi.org/10.1037/bul0000330

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De Vos, T. (2010). TempoTest Automatiseren (TTA). Boom Test.

Kapteijns, B., van de Ven, M., van Hoogmoed, A. H., Kroesbergen, E. H. (2025). Cognitive and home predictors of precocious reading and math before formal education. Journal of Experimental Child Psychology, 252, 1-32. https://doi.org/10.1016/j.jecp.2024.106159

 

Kessels, R., Van den Berg, E., Ruis, C., & Brands, A. (2008). The backward span of the Corsi Block-Tapping Task and its association with the WAIS-III Digit Span. Assessment, 15, 426–434. https://doi.org/10.1177/1073191108315611

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Peng, P., Lin, X., Ünal, Z. E., Lee, K., Namkung, J., Chow, J., & Sales, A. (2020). Examining the mutual relations between language and mathematics: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 146(7), 595-634. https://doi.org/10.1037/bul0000231

Peng, P., Wang, T., Wang, C., & Lin, X. (2019). A meta-analysis on the relation between fluid intelligence and reading/mathematics: Effects of tasks, age, and social economics status. Psychological Bulletin, 145(2), 189-236. https://doi.org/10.1037/bul0000182

Peters, L., Op de Beeck, H., & De Smedt, B. (2020). Cognitive correlates of dyslexia, dyscalculia and comorbid dyslexia/dyscalculia: Effects of numerical magnitude processing and phonological processing. Research in Developmental Disabilities, 107. https://doi.org/10.1016/j.ridd.2020.103806

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Schlichting, L. (2005). Peabody Picture Vocabulary Test-III-NL. Harcourt Assessment.

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Slusser, E., Ribner, A., & Shusterman, A. (2019). Language counts: Early language mediates the relationship between parent education and children’s math ability. Developmental Science, 22(3). https://doi.org/10.1111/desc.12773

Struiksma, A., van der Leij, A., & Vieijra, J. (2009). Diagnostiek van Technisch Lezen en Aanvankelijk Spellen (DTLAS). VU Uitgeverij

van Bergen, E., de Jong, P. F., Maassen, B., & van der Leij, A. (2014). The effect of parents’ literacy skills and children’s preliteracy skills on the risk of dyslexia. Journal of Abnormal Child Psychology, 42(7), 1187-1200. https://doi.org/10.1007/s10802-014-9858-9

Verhoeven, L. (1995). Drie-Minuten-Toets (DMT). Cito.

Viesel-Nordmeyer, N., Reuber, J., Kuhn, J.-T., Moll, K., Holling, H., & Dobel, C. (2023). Cognitive profiles of children with isolated and comorbid learning difficulties in reading and math: A meta-analysis. Educational Psychology Review, 35(1), 1-37. https://doi.org/10.1007/s10648-023-09735-3

Zhang, Z., & Peng, P. (2023). Co-development among reading, math, science, and verbal working memory in the elementary stage. Child Development, 94(6). https://doi.org/10.1111/cdev.13962

AUTORES

Célia Oliveira

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Célia Oliveira é doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na capacidade de memória operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um mestrado em Psicologia Clínica.

Atualmente, é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da aprendizagem, atenção e memória humana.

Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.

Marta Pereira

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Marta Pereira está a realizar o estágio profissional de acesso à Ordem dos Psicólogos Portugueses.

É licenciada em Psicologia (2022), pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e mestre em Psicologia da Educação (2024), pela Universidade do Minho.

Desde 2022, integra o Grupo de Investigação em Problemas de Comportamento e Aprendizagem, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, onde realizou a sua dissertação de mestrado intitulada «Satisfação Profissional e Atribuições Relativamente à Indisciplina: Um Estudo com Professores do Ensino Básico».

Além disso, colabora com o programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, contribuindo na avaliação dos alunos apoiados e na escrita de textos de apoio.

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