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Introdução

Considere o seguinte exemplo:

Karole-Ann, educadora de infância, incentivou Hudson, de quatro anos, a escrever um livro. Hudson nunca tinha escrito um livro. Ao perceber a hesitação da criança, a educadora mostrou-lhe que os livros que lhe tinham sido lidos até então foram escritos por alguém. Hudson reconheceu imediatamente que também poderia escrever um livro, tendo trabalhado no seu primeiro livro, intitulado «Vingadores Unidos», durante mais de 45 minutos. Logo depois, criou o segundo livro, «Jacarés e Crocodilos». Hudson partilhou com a educadora o que havia escrito, narrando as ilustrações e percorrendo com o dedo as letras que havia escrito. Além disso, Hudson pôs ambos os livros na sala, dizendo à educadora: «Vou pôr os meus livros na estante para que possa lê-los.» Durante vários meses, Hudson pediu para escrever mais livros.

A escrita das crianças, principalmente a das que ainda não iniciaram a aprendizagem formal, é caracterizada como uma escrita composicional. De acordo com Ray e Glover (2008), a escrita composicional baseia-se no desenvolvimento de um projecto que requer atribuição de significado e sobre o qual os escritores têm de reflectir em matéria de propósito, planeamento, público-alvo, escolha de palavras, técnica, tom e apresentação. Neste sentido, tal como os livros de Hudson demonstram (Imagens 1 e 2), a escrita composicional abrange todos os recursos aos quais os escritores recorrem para criar significado, tais como letras, palavras e desenhos.

Imagens 1 e 2. Livro Jacarés e Crocodilos

Quando os adultos oferecem às crianças a oportunidade de se envolverem em actividades de escrita, como a apresentada acima, elas acreditam que são capazes de escrever para propósitos intelectuais, escolares e sociais, como, por exemplo, narrar experiências e explorar posições sociais. Além disso, ao envolverem-se em actividades de escrita e principalmente ao receberem retorno, as crianças adquirem conhecimento relacionado, por exemplo, com as correspondências letras-sons. A experiência de Hudson vai além do treino de escrita de letras, do nome próprio e do desenho. Hudson envolveu-se activamente na tarefa de escrita, tomando decisões importantes acerca da criação e representação de significado. Por exemplo, no primeiro livro, além da resolução de problemas (recorreu à forma de um crocodilo para desenhá-lo), reviu o seu trabalho (reparou que se esqueceu de desenhar a cauda do crocodilo).

 

Como motivar e envolver as crianças em actividades de escrita

De acordo com Friddle e Ivey (2023), é fundamental considerar o que é necessário para as crianças escolherem escrever, bem como o que mantém o seu envolvimento em actividades de escrita. Segundo as mesmas investigadoras, embora não seja incomum encontrar espaços destinados à escrita na pré-escola, é pouco provável que as crianças escolham escrever em detrimento de outras actividades disponíveis. Por isso, para escolherem e se envolverem em actividades de escrita, as crianças têm, necessariamente, de acreditar que escrever constitui uma actividade que está ao seu alcance, assim como perceber o seu propósito.

A teoria da autodeterminação (Ryan & Deci, 2000) constitui uma ferramenta útil para apoiar as crianças no envolvimento com a escrita, a partir da promoção de três necessidades básicas directamente relacionadas com a motivação: percepção de competência, de autonomia e de interacção.

Reflicta acerca das seguintes questões:

  1. Que materiais estão disponíveis na escola para motivar as crianças a escrever?
  2. Como incentiva as crianças a reflectir acerca das suas escolhas durante as actividades de escrita?
  3. Relaciona a leitura de livros ilustrados com a escrita das crianças?

1. Percepção de competência

As crianças podem sentir-se escritoras competentes, mesmo que não tenham iniciado a aprendizagem formal da escrita. Quando as crianças adicionam desenhos e letras aos livros, antes de aprenderem as correspondências grafo-fonológicas e as convenções da escrita, os educadores podem continuar a apoiar a sua percepção de competência, assegurando-lhes, tal como Friddle e Ivey (2023) referem, que as suas aproximações ou tentativas estão correctas. Por exemplo, quando uma criança aponta para as letras que escreveu e refere o que elas significam, mesmo que ainda não seja capaz de associar sons a letras específicas, está a mostrar uma aproximação ao conhecimento, sentindo-se consequentemente confiante e motivada. No entanto, segundo Friddle e Ivey (2023), o mesmo não acontece quando as crianças são incentivadas a fazer cópias. Especificamente, quando uma criança é apenas direccionada para a cópia de letras e palavras, pode sentir que tal significa que ainda não é competente e deve imitar exclusivamente a escrita dos adultos.

O que os adultos dizem também molda a percepção de competência das crianças. Por exemplo, quando uma criança escreve uma sequência de letras numa página e narra o que elas significam, pode referir, entre outros aspectos, que algumas letras são do seu nome e outras do nome de um amigo. Embora não exista um manual que sugira o que os adultos devem dizer ou fazer para incentivar as crianças, um princípio fundamental é considerar que informação estaria próxima do que elas já sabem. Considerando o exemplo apresentado, uma hipótese seria pedir à criança para escrever letras que correspondam aos sons das letras que ela leu enquanto narrava o que escreveu. Outra hipótese seria dizer: «Escreveste algumas das letras que conheces. De certeza, vais adicionar outras letras às tuas páginas à medida que as aprendes.»

Além disso, os educadores podem apoiar o conhecimento das crianças acerca da escrita modelando e orientando as tomadas de decisão. Por exemplo, podem pensar em voz alta enquanto planeiam o que vão escrever no próprio livro e fornecer algumas opções de soletração às crianças que querem pôr o nome de um amigo no seu livro (e. g., «Começarias a escrever o nome do Killian com K ou D?»).

2. Percepção de autonomia

A percepção de autonomia das crianças, isto é, a percepção de que uma actividade está a progredir de acordo com o próprio ritmo, é apoiada quando elas têm liberdade para tomar as próprias decisões. De acordo com Friddle e Ivey (2023), é fundamental os educadores terem em consideração que, na mesma sala de aula, uma criança pode estar entusiasmada por escrever um livro sobre um monstro, enquanto outra pode querer escrever sobre o seu gato. Por isso, aderir a um tema único, isto é, incentivar as crianças a escreverem sobre o mesmo tema, tornando a criação de livros uma actividade fechada em vez de uma atividade de carácter aberto e, portanto, mais motivadora, pode acarretar consequências negativas na percepção de autonomia. Por outro lado, é importante ter em atenção que algumas crianças podem considerar esmagadora a ideia de escolher um tema. No caso das crianças que não conseguem escolher um tema, os professores podem oferecer algumas sugestões, por exemplo: «Mais cedo, estavas a contar-me que foste cortar o cabelo pela primeira vez. Podes escrever um livro sobre isso.» Neste sentido, é importante os educadores expandirem a percepção das crianças sobre o que é possível escrever, diversificando, por exemplo, os livros disponíveis em género, formato, tema e representação cultural e linguística, assim como priorizar o que ressoa em cada criança.

Pequenos incentivos, baseados fundamentalmente no que as crianças dizem e fazem, aumentarão a sua motivação para a escrita. No entanto, é fundamental ter em consideração que a chave para incentivar as crianças sem comprometer o seu sentido de autonomia é fornecer retorno, indicando o que fizeram e apoiando-as para melhorarem cada vez mais. Os educadores podem referir, por exemplo: «Quando mencionaste que o Spin é invisível, pensei no quão difícil é saber quando está presente. Fico curioso sobre como podes desenhar o Spin para que, quando as pessoas leiam o teu livro, saibam que não o conseguem ver.» Os educadores também podem chamar a atenção das crianças para as personagens, por exemplo. «No que está a pensar o teu coelho?»

3. Percepção de interacção

A motivação das crianças para escrever surgirá quando sentirem que estão seguras e que se relacionam ou interagem com os pares e adultos. De acordo com a literatura, a relação com os educadores é particularmente importante para as crianças. Aliás, as crianças que acreditam que os educadores se preocupam com elas têm uma auto-estima mais elevada, maior envolvimento escolar e melhor bem-estar. Importa ainda salientar que as interacções de Hudson com Karole-Ann o posicionaram como o responsável pela criação do próprio livro. Enquanto escrevia e lia os seus livros, a educadora não o corrigia nem o pressionava. Pelo contrário, demonstrava o seu interesse através de perguntas esclarecedoras que o ajudaram a avançar.

 

Considerações finais

Embora a necessidade de competência, autonomia e interacção tenham sido apresentadas de forma separada, devem ser consideradas simultaneamente.

Os educadores podem pôr em prática as seguintes sugestões:

  1. Leia e converse diariamente com as crianças sobre livros ilustrados. Incentive-as a escrever os seus próprios livros;
  2. Organize os materiais necessários para as crianças escreverem, por exemplo, cadernos e materiais de escrita;
  3. Peça às crianças para lerem ou falarem sobre os livros enquanto os escrevem;
  4. Faça perguntas abertas. Incentive as crianças a compartilhar as estratégias utilizadas durante a escrita;
  5. Peça às crianças para lerem em voz alta os livros que escreveram. Torne os livros acessíveis e, não menos importante, encoraje a sua releitura.

Referências bibliográficas

Friddle, K. A., & Ivey, G. (2023). Motivate and engage our youngest writers. The Reading Teacher, 0(0), 1-10. https://doi.org/10.1002/trtr.2251

AUTORES

Célia Oliveira

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Célia Oliveira é Doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na Capacidade Memória Operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um Mestrado em Psicologia Clínica.

Atualmente é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da Aprendizagem, Atenção e Memória Humana.

Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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