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Agora que as aulas terminaram, os alunos preparam-se para os exames nacionais. Uma etapa fundamental para os que querem prosseguir para o ensino superior. Este ano, pela primeira vez, os alunos do ensino profissional vão ter um concurso especial de acesso.

A grande novidade do acesso ao ensino superior em 2020 é a criação de um novo concurso especial1 de ingresso para titulares de cursos de dupla certificação (via profissional) e cursos artísticos especializados do ensino secundário. A justificação invocada no decreto-lei para esta inovação é «alargar a base social de participação no ensino superior, garantindo um processo efetivo de convergência com a Europa até 2030 e trilhando o percurso para atingir nesse ano um nível de 60% dos jovens com 20 anos que participam no ensino superior e um nível de 50% de diplomados na faixa etária dos 30-34 anos». Há dez anos, o objetivo de 40% de diplomados do ensino superior em 2020 parecia fácil de atingir. Ainda por volta de 2015, uma simples extrapolação dos valores então conhecidos para este indicador reforçava este otimismo e, contudo, o desiderato parece ter-nos escapado nos anos mais recentes.

Interessa compreender a relevância deste indicador e as causas desta frustração só recentemente reconhecida. Um estudo de 2016, produzido pela Direção Geral de Estatísticas da Educação e da Ciência (DGEEC)2, dava o alarme, prevendo (no cenário base) a estabilização desse indicador nos anos seguintes por volta dos 31%. Neste estudo, são considerados os melhores valores então conhecidos para o número de graduados jovens e o impacto previsível da emigração de jovens qualificados que já então era muito relevante. Não é considerado o impacto dos novos cursos TeSP (Técnico Superior Profissional), por não terem ainda dado um número significativo de diplomas a pessoas entre os 30 e 34 anos.

A comparação entre os vários países pode ser feita usando os dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)3, em que começa a aparecer discriminada a percentagem de diplomados com o nível 5 (ciclo curto ou TeSP), nível 6 (Licenciatura), nível 7 (Mestrado) e Nível 8 (Doutoramento). Interessa comparar as faixas etárias de 25 a 34 e de 25 a 64 anos para apreciar a dinâmica mais recente da qualificação, embora o limite inferior de 25 anos exclua muitos diplomados que terminam os seus ciclos de formação superior mais tarde. Ou seja, se um jovem de 26 anos ainda está a estudar, não entra nas estatísticas até concluir a formação, o que é particularmente relevante nos países em que a frequência de ensino superior tende a ser mais tardia do que entre nós. De facto, é bem conhecido o nosso atraso secular em todos os níveis educativos. A universalização do primeiro ciclo educativo só foi completada em finais da década de 1950, e o secundário era completado por menos de 50% dos jovens em finais do século XX. A participação em cursos de graduação4 de ensino superior cresceu ao longo de todo o século XX a um ritmo de cerca de 6% ao ano, mas apenas na década de 1985-95 teve o impulso adicional que nos permitiu chegar às médias europeias (e até ultrapassar a Espanha).

Em relação ao ciclo curto, deve notar-se que a recolha de dados pela OCDE é recente e nem todos os países fizeram já o trabalho de estabelecer uma correspondência com os níveis de formação interna, que seja aceite pela OCDE, especialmente a duração mínima de dois anos. É o caso da Alemanha, que, apesar de ter uma formação profissional muito sólida e prestigiada, aparece com valores muito baixos para o ciclo curto, ao contrário da Áustria, onde o ciclo curto está bem estabelecido e, sendo seletivo, é mesmo preferido por muitos em relação às licenciaturas universitárias de acesso livre. Se excluirmos o ciclo curto, Portugal fica ainda abaixo da média da OCDE ou da UE23, mas muito próximo; fica até com valores mais altos do que os nossos vizinhos mais imediatos, Espanha e França. De facto, estes países têm sistemas de ciclo curto muito bem desenvolvidos, ainda que muito diferentes.

Em França, há dois tipos de formação que encaixam nesta categoria: o DUT (Diplôme Universitaire de Technologie) e o BTS (Brevet de Technicien Supérieur); o primeiro associado às universidades, e o segundo a espaços próprios nas escolas secundárias. Em Espanha, o ciclo curto corresponde ao ciclo de formação profissional superior, completamente independente das universidades, sendo a transição entre a via profissional do secundário e a via académica muito difícil. É esta última que leva às provas de admissão à universidade (ainda mais conhecida por selectividad). Para os alunos que tenham optado pela via profissional (de nível médio), está aberta a opção pela formação profissional superior. Note-se que o número de candidatos à selectividad espanhola é muito semelhante ao número de candidatos que se apresentam ao Concurso Nacional de Acesso em Portugal, feita a correção para a diferença de população. 

França tem um sistema de ensino superior muito diferenciado com uma rede de Grandes Écoles prestigiadas socialmente e muito seletivas. Nas universidades, a maioria dos cursos são de acesso livre para todos os candidatos que possuam um (qualquer) diploma do ensino secundário, nível que está organizado em três vias. A geral (mais académica) alimenta principalmente as licenciaturas universitárias e os cursos preparatórios para o concurso às Grandes Écoles. A via tecnológica alimenta principalmente os ciclos curtos (17% para DUT e 50% para BTS), mas ainda apresenta 15% dos alunos a optar por uma licenciatura universitária. Para a via profissional, esta última opção é residual (6%), dominando a opção por BTS. Para estes alunos, a opção por uma licenciatura pode ser livre, mas é fortemente desencorajada pelo altíssimo nível de insucesso e abandono. Note-se que, dos jovens que terminam o secundário, perto de 60% optam pela via geral, enquanto pouco mais de 20% optam pela tecnológica, e um pouco menos, pela via profissional.

Os sistemas de acesso

Em quase todos os países, o acesso e a seriação dos candidatos ao ensino superior dependem dos resultados do ensino secundário ou de uma prova nacional especial. Formalmente, é da responsabilidade das próprias universidades, mas a primeira seriação tende a ser nacional. (A ideia generalizada de que as universidades são livres de escolher os seus estudantes está longe da realidade.) Muitos países começam a ter disposições legais, ou fortes recomendações, no sentido de atingirem uma maior equidade social, e isso significa algum tipo de preferência por candidatos de meios mais frágeis ou com percursos menos prestigiados, cabendo à instituição de ensino superior avaliar o seu potencial, com vista ao provável sucesso no curso a que se candidatam. A Inglaterra tem um sistema nacional5 de distribuição de todos os candidatos, sendo a decisão final tomada por cada instituição, em função de uma avaliação fina, envolvendo normalmente uma entrevista.

Nos cursos mais competitivos (Medicina, entre outros) estão a ser usados, em vários países, testes especiais para avaliar o potencial de candidatos com um historial de excelência no secundário. Nos Estados Unidos, não há um currículo nacional, sendo assim impossível uma avaliação comparativa baseada nos conteúdos curriculares para candidatos oriundos de estados, condados ou escolas diferentes. A solução é a aplicação de testes independentes6, menos dependentes do currículo concreto de cada escola. A maioria das universidades exige estes testes como primeiro meio de apreciação, seguindo-se depois uma entrevista ou outra forma de avaliação detalhada em que podem ser introduzidos alguns fatores de preferência social ou discriminação positiva.

Os sistemas de acesso são quase sempre controversos. Por um lado, podem não respeitar a equidade, favorecendo candidatos oriundos de ambientes educacional e socialmente mais ricos. Por outro lado, o sistema de decisão descentralizado abre a possibilidade de favorecimento pessoal, sendo bem conhecidos os escândalos e as práticas reiteradas de preferência por parte de antigos alunos ou de financiadores da instituição. Vários países, querendo atenuar a seleção social resultante da simples utilização dos resultados do secundário ou mesmo dos testes americanos, impõem às instituições quase cotas em função do ambiente social de origem (medido pelo código postal, pelo tipo de escola ou pela dependência de apoio social no percurso escolar, por exemplo), evitando a definição central de critérios sociais de preferência.

Como estamos em Portugal

Em Portugal são conhecidos alguns (poucos) estudos que mostram a falha de equidade no acesso, omitindo e esquecendo mesmo a quase total exclusão de alguns grupos sociais como emigrantes recentes do hemisfério sul. Estudos de seguimento dos estudantes inscritos na Universidade do Porto7 verificaram consistentemente uma forte correlação entre o sucesso académico e a classificação de colocação, e ainda que os mais jovens (na candidatura) tinham melhor desempenho. Estes estudos mostraram também que os candidatos a bolsa de ação social e os oriundos de escolas estatais têm maior sucesso

O mais recente estudo sobre o acesso ao ensino superior8 encomendado pelo MCTES (Ministério da Ciência e do Ensino Superior) contribui para a discussão do acesso dos alunos da via profissional, defendendo que  «o reconhecimento da injustiça do sistema de acesso para aqueles diplomados [da via profissional] e a decisão de introduzir maior equidade no sistema levaram a que fosse recentemente formalizada essa via [de um novo concurso especial]». O argumento é desenvolvido a partir da constatação de que o número de alunos matriculados em cursos de dupla certificação do ensino secundário é de 42% do total (33% em cursos profissionais e 6% em cursos de aprendizagem) e que apenas 6% destes se encontram num curso conferente de grau no ano seguinte, com uns 12% adicionais em cursos TeSP. Para a via científico-humanística, 79% transitam diretamente para cursos conferentes de grau, e 1% para cursos TeSP. Curiosamente, a percentagem dos alunos da via profissional que transitam direta e imediatamente para um curso conferente de grau em Portugal é análoga àquela que ocorre em França9, mas a transição para o ciclo curto ou TeSP fica ainda muito longe dos valores da transição em França para BTS e DUT. A discussão do tipo de prova a aplicar no concurso especial criado pelo Decreto-Lei 11/2020 para os diplomados pela via profissional e artística merece uma apreciação especial.

Mudar as formas de acesso?

Como já foi dito, muitos países usam os resultados do ensino secundário para medir o potencial dos candidatos ao ensino superior. É a via mais simples e pode ser defendida quando haja um currículo razoavelmente rígido e os candidatos tenham um mesmo percurso. Esta simplicidade tem de ser abandonada sempre que estas condições não são satisfeitas. Em Portugal, a criação (e afinação) do Concurso Nacional de Acesso foi feita a pensar na antiga via liceal (ou cientifico-humanística) e sempre teve alguma dificuldade em integrar os alunos da via artística especializada e de outros sistemas de ensino secundário (escolas estrangeiras). Com o desenvolvimento do ensino profissional nos últimos 20 anos, merece uma nova reflexão. A garantia de equidade de todos os candidatos e o pragmatismo de evitar sujeitar os candidatos a uma multiplicidade de provas levaram à criação de um sistema nacional de acesso. Se, para o Concurso Nacional de Acesso, a transparência é total e o escrutínio público enorme, nos concursos locais falta escrutínio externo. Um caso bem conhecido é o das provas locais para os «maiores de 23 anos» que geraram uma decuplicação do número de candidatos admitidos, de um ano para o outro, pela simples passagem de prova nacional para prova local. Sugere-se agora – para o concurso dos alunos das vias profissionais – que as instituições se possam associar para organizar a prova prevista nos novos concursos locais e os institutos politécnicos do estado adotem uma solução regionalizada de uma prova para o Norte, outra para o Sul do país e outra para o Centro e Lisboa. Ficam de fora as regiões autónomas e todas as instituições privadas que irão manter a sua prova própria. Uma prova nacional facilitaria a vida dos candidatos e garantiria um módico de transparência e escrutínio.

Outra questão é o tipo de prova a propor aos candidatos, e, para a via profissional, a convencional avaliação de conhecimentos entrará em dificuldades porque os currículos são, na realidade prática, muito variados e dificilmente se desenharão provas com um nível académico comparável ao das outras vias de acesso. Esta é a nova realidade, com uma diferença em relação a França, país sobre o qual se comentava acima o altíssimo nível de insucesso dos candidatos que tomam a «opção errada». De facto, temos já cursos, especialmente nas áreas da engenharia, que são alimentados por candidatos com padrões académicos distantes dos evidenciados no Concurso Nacional de Acesso. Sinais deste risco têm sido dados pela A3ES (Agência de Avaliação e de Acreditação do Ensino Superior), que tem expressado preocupação com a admissão em algumas licenciaturas de estudantes sem razoáveis garantias de qualidade

Haveria outras soluções, que implicariam o repensar de todo o sistema de acesso sem deixar de cumprir o prescrito no Art.º 76.º da Constituição – «o regime de acesso à Universidade e às demais instituições do ensino superior garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do país» –, nem deixar de satisfazer o previsto no Art.º 12.º da Lei de Bases do Sistema Educativo – «a prova ou provas de capacidade referidas no número anterior são de âmbito nacional e específicas para cada curso ou grupo de cursos afins». Seguindo a sugestão do Relatório do Grupo de Trabalho de 20208, «uma avaliação conjunta das competências e dos conhecimentos concretizar-se-ia através de uma bateria de provas (ou testes) orientadas para a avaliação [...] dos conhecimentos, das capacidades e das atitudes, tornando-a mais adequada ao mecanismo de acesso». Problema diferente é o da Medicina e de outros cursos muito competitivos, para os quais a solução encontrada noutros países terá de vir a ser considerada. 

Não é esta discussão que vai resolver definitivamente os problemas da equidade social no acesso. Aliás, o progresso neste sentido exige outros instrumentos de correção do potencial do candidato estimado por algum dos métodos conhecidos. Nenhum país tem hoje a solução definitiva, mas não estamos dispensados de caminhar nesta direção.

Referências:

1 Decreto-Lei n.º 11/2020 de 2 de abril.

2 Direção Geral de Estatísticas de Educação e da Ciência, «Diplomados com o Ensino Superior – População dos 30 aos 34 anos, dados e projeções».

3 OCDE, Education at a Glance 2018 e Education at a Glance 2019.

4 José Ferreira Gomes, «O ensino superior – a recuperação do atraso», em O Economista – Anuário da Economia Portuguesa, n.º 31, 2018, pp. 54-58.

5 UCAS, Universities and Colleges Admissions Service.

6 ACT, American College Testing; SAT, Scholastic Aptitude Test.

7 Universidade do Porto, «Percurso dos estudantes admitidos pelo regime geral em licenciatura – 1.º ciclo e mestrado integrado na Universidade do Porto em 2014/2015», 27 de julho de 2018.

8 Relatório do Grupo de Trabalho sobre o acesso ao ensino superior (Despacho 1307/2020), 31 de maio de 2020.

9 Ministère de l’Énseignement Supérieur, de la Recherche et de l’Innovation, «Parcoursup 2020: Les voeux d’orientation des lycéens pour la rentrée», Note Flash n.º 06, abril 2020.

AUTOR

José Ferreira Gomes

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José Ferreira Gomes é licenciado em Engenharia Químico-Industrial pela Universidade do Porto (1970), Mestre em Matemática (M.SC) e Doutor em Química Teórica (D.Phil) pela Universidade de Oxford, Reino Unido (1976). Professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto de 1968 a 2013, catedrático desde 1985. Presidente do Departamento de Química e do Conselho Científico da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, Presidente do Conselho Científico de Ciências Exatas da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Presidente do Grupo de Santander (grupo de universidades) e Presidente da Sociedade Portuguesa de Química. Vice-reitor da Universidade do Porto (1998-2006), deputado à Assembleia da República (2009-11), Secretário de Estado do Ensino Superior do XIX Governo (2013-2015) e Secretário de Estado do Ensino Superior e da Ciência do XX Governo (2015). Presidente do Conselho Geral da Universidade da Beira Interior (2017-). Coordenador do Projeto Casa das Ciências (2008-).
https://www.fc.up.pt/pessoas/jfgomes/
http://maissuperior.blogspot.com/

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