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Um dos maiores desafios das escolas é o combate ao bullying. Em casos moderados, deverão os adultos encorajar as crianças vítimas de bullying a resolver o problema sozinhas? A investigação em neurociência poderá dar-nos uma pista.

No mundo animal as reações a situações ameaçadoras são muito diversificadas. Quando vemos um documentário sobre a vida selvagem, com frequência ficamos intrigados ao antecipar o que a presa irá fazer quando percebe que está na mira de um predador. Nestes casos será difícil adivinhar se o animal irá fugir, bloquear ou, em determinados casos, enfrentar o perigo. O mesmo tipo de situação pode acontecer no mundo dos humanos, especialmente durante a infância e a adolescência.

Felizmente as sociedades modernas estão a desenvolver-se de forma a proteger as crianças, fazendo com que sejam cada vez menos confrontadas com  situações de risco, comparativamente com o que acontecia no passado (1). Contudo, frequentemente os recreios das escolas são uma exceção a esta tendência. São precisamente o local onde as crianças se encontram juntas sem grande intervenção por parte dos adultos. Isto aplica-se sobretudo no início da adolescência, quando as crianças se tornam mais autónomas, desenvolvem a sua identidade e formam um grupo de amigos próximos. No entanto, ao mesmo tempo, os recreios podem ser exatamente os locais onde algumas crianças experienciam situações de ameaça reais que lhes suscitam medo.

No mundo em que vivemos, as crianças são muitas vezes educadas e modeladas para terem um bom desempenho e são muitas vezes valorizadas por se destacarem dos outros (2,3).  Dadas estas expectativas, será de prever que, nestas idades, o poder possa desempenhar um papel social relevante. Infelizmente, algumas crianças, de modo a satisfazerem essas expectativas, usam o exercício de poder sobre os outros como forma de provar que são melhores do que os seus pares. Esta é uma das causas que pode estar associada ao bullying.

O bullying é uma forma de comportamento interpessoal agressivo imposta por alguém com vista a exercer poder sobre outra pessoa. No recreio da escola, este tipo de demonstração de poder pelo agressor (bully) poderá estar relacionado com a perceção pelo próprio da sua popularidade e vantagem física e/ou ser o resultado de fenómenos de grupo. Poderá estar igualmente relacionado com o facto de o agressor ter encontrado algum tipo de vulnerabilidade noutra criança e utilizar esse conhecimento para a perturbar. Existem muitas formas de bullying. Vão desde a agressão física e verbal explícita, ao comportamento social abusivo indireto, como a  exclusão do grupo ou maldizer (4).

Nunca ignore o bullying!

Nos casos de manifestações moderadas de bullying, é muitas vezes dito às crianças para resolverem o problema sozinhas. Esta ideia baseia-se na esperança de que a vítima de bullying melhore as suas competências sociais ao lidar de forma autónoma com a situação. Mas em muitos casos, isto é precisamente o que não se deve fazer.

Existem vários motivos para tal, sendo o mais importante a necessidade de uma intervenção atempada nas situações de bullying moderado, com vista a proteger a vítima e evitar que o caso se torne mais sério. O bullying pode provocar danos tanto físicos como psicológicos nas vítimas (5,6). Curiosamente, por outro lado, uma atitude de indiferença por parte dos adultos pode igualmente interferir no desenvolvimento pessoal dos próprios agressores. Ao permitirem que os agressores se habituem a utilizar o poder nas relações sociais, os adultos poderão estar a contribuir para o desenvolvimento de uma forma desadequada de viver em sociedade. Ou seja, quando uma criança se habitua a utilizar o poder de forma abusiva na relação com os outros, pode ela própria, no futuro, ter mais probabilidades de vir a sofrer de dificuldades psicológicas e de outros problemas na vida (7,8).

Mas existem ainda outras razões que justificam a necessidade de ajudar as crianças a resolverem as situações de bullying, contrariando a tendência de afirmar que devem resolver o problema sozinhas. A evidência mais recente provém da investigação em neurociência sobre a forma como o cérebro reage a situações de perigo.

Quando o cérebro “diz” ao animal para bloquear

Um estudo conduzido no Centro de Investigação Champalimaud por Ricardo Zacarias e colegas (9) sobre as reações de medo na mosca-da-fruta, concluiu que existem partes específicas do cérebro que, em determinadas circunstâncias, assumem o controlo e decidem simplesmente se o animal deve bloquear (paralisar) ou fugir (escapar) da situação. O medo pode ser induzido nestes insetos colocando-os perante a aproximação de uma sombra circular preta. Em situações de perigo, as moscas da fruta têm comportamentos muito semelhantes aos de outros animais, incluindo os humanos (10,11,12,13). Por vezes bloqueiam; noutras ocasiões, simplesmente voam e escapam à ameaça.

Mas o que leva as moscas da fruta a decidir o que fazer? A equipa do Centro de Investigação Champalimaud realizou várias experiências e descobriu que um grupo de neurónios, denominado por DNp09, assume um papel importante quando estes insetos sentem uma ameaça. Mais especificamente, os cientistas controlaram a atividade dos neurónios DNp09 utilizando uma técnica chamada optogenética e observaram que quando estes neurónios eram desativados, as moscas não bloqueavam e fugiam do círculo preto. Por outro lado, quando os neurónios eram ativados, a tendência das moscas era bloquear. O mais interessante foi quando este grupo de cientistas percebeu que as moscas tinham maior tendência para bloquear quando, no momento da ativação dos neurónios, estavam a mover-se lentamente. Surpreendentemente, os cientistas descobriram que a velocidade do movimento era decisiva para prever se uma determinada mosca iria ou não bloquear. Deste modo, concluíram que a principal função dos neurónios DNp09 é decidir automaticamente o que fazer perante o perigo dependendo do que está a acontecer nesse preciso momento. Se o animal se mover rapidamente, estes neurónios irão “dizer-lhe” para escapar. Se estiver a mover-se devagar, os neurónios irão fazer com que bloqueie.

A reação de bloqueio pode atraiçoar a criança vítima de bullying

O leitor deve estar a pensar: “Porquê falar de moscas-da-fruta quando deveríamos estar a falar de humanos?” Na realidade, as moscas-da-fruta são um poderoso modelo experimental na biologia e têm sido úteis para resolver muitas questões científicas. Para além disso, estes insetos têm reações de medo muito semelhantes às que acontecem em todo o mundo animal, incluindo mamíferos e humanos (14,15,16,17).

Voltemos então ao recreio da escola. Geralmente, as vítimas de bullying pertencem a um grupo de crianças que têm em geral uma atitude mais introspetiva. Tendem a focar-se mais nos seus pensamentos e emoções (18), o que significa que existe uma maior probabilidade de serem menos reativas e consequentemente menos enérgicas nos seus movimentos - por outras palavras, de estarem possivelmente num estado semelhante ao de uma mosca a mover-se lentamente.

Não podemos ignorar que o cérebro humano é infinitamente mais complexo do que o da mosca-da-fruta, e que as reações humanas ao medo envolvem muitas mais estruturas cerebrais. Mas também não podemos negar o valor informativo deste estudo para a compreensão do cérebro humano. Mesmo que esta comparação seja apenas parcialmente correta, poderá significar que, perante uma situação de ameaça, a vítima de bullying poderá ser mais propensa a bloquear automaticamente do que a fugir ou confrontar o agressor. Convém aqui notar que bloquear perante uma situação de bullying é a resposta menos eficaz para pôr fim ao incidente (19). De facto, a reação automática de bloqueio irá permitir ao agressor assumir o poder sobre a vítima e continuar a perpetuar a agressão. No meio selvagem, o bloqueio é muitas vezes útil porque permite ao animal passar despercebido face aos predadores. Mas nos recreios da escola, perante o bullying, esta reação não ajuda em nada a vítima. Ou seja, a resposta automática do cérebro não é útil (19).

 Há ainda muito trabalho a desenvolver nesta área. À medida que os cientistas adquirem conhecimento sobre o que acontece no cérebro durante as reações de medo, poderemos perceber melhor por que motivo alguns comportamentos que parecem ser inadequados são, de facto, apenas reações normais do cérebro. O cérebro humano pode não estar preparado para lidar com os novos fenómenos cada vez mais desafiantes (e por vezes lamentáveis) das sociedades modernas.

Na realidade, em determinadas situações, o cérebro parece comportar-se melhor no meio selvagem, do que em ambientes sociais. Com base nesta evidência, percebe-se a necessidade de, no recreio, em particular perante uma situação de bullying, se definirem intervenções para contrariar as decisões automáticas do cérebro. Podemos especular sobre o que aconteceria se as crianças vulneráveis fossem ajudadas a definir um objetivo para as suas atividades durante o intervalo na escola (e.g. “procurar o João para trocar cromos”), evitando assim de se encontrarem “perdidas” no meio dos outros. Poder-se-iam conceber interessantes projetos para testar esta hipótese no futuro. Por enquanto não sabemos se esta medida será útil na prevenção do bullying. Trata-se apenas de uma ideia ou de uma pergunta científica que pode ser avaliada em projetos de investigação no futuro. Entretanto, enquanto não temos uma resposta definitiva, perante uma queixa de bullying, os adultos devem intervir logo desde o início para impedir que o agressor leve a cabo comportamentos agressivos (20) e ajudar a vítima a sentir-se segura e a desenvolver competências para lidar com a situação. Durante este processo os adultos devem monitorizar se a sua intervenção está a ser eficaz, e persistir até darem por encerrado o episódio de bullying em causa.

Referências

1. Lachman, P., Poblete, X., Ebigbo, P. O., Nyandiya-Bundy, S., Bundy, R. P., Killian, B., & Doek, J. (2002). Challenges facing child protection. Child abuse & neglect, 26(6-7), 587-617.

2. Parsons, J. E., Adler, T. F., & Kaczala, C. M. (1982). Socialization of achievement attitudes and beliefs: Parental influences. Child development, 310-321.

3. Seginer, R. (1983). Parents' educational expectations and children's academic achievements: A literature review. Merrill-Palmer Quarterly (1982-), 1-23.

4. Menesini, E., & Salmivalli, C. (2017). Bullying in schools: the state of knowledge and effective interventions. Psychology, health & medicine, 22(sup1), 240-253.

5. Arseneault, L. (2017). The long‐term impact of bullying victimization on mental health. World psychiatry, 16(1), 27.

6. Gini, G., & Pozzoli, T. (2013). Bullied children and psychosomatic problems: A meta-analysis. Pediatrics, 132(4), 720-729.

7. Farrington, D. P., & Ttofi, M. M. (2011). Bullying as a predictor of offending, violence and later life outcomes. Criminal behaviour and mental health, 21(2), 90-98.

8. Ttofi, M. M., & Farrington, D. P. (2008). Bullying: Short-term and long-term effects, and the importance of defiance theory in explanation and prevention. Victims and Offenders, 3(2-3), 289-312.

9. Zacarias, R., Namiki, S., Card, G. M., Vasconcelos, M. L., & Moita, M. A. (2018). Speed dependent descending control of freezing behavior in Drosophila melanogaster. Nature communications, 9(1), 1-11.

10. Blanchard, D. C., Hynd, A. L., Minke, K. A., Minemoto, T., & Blanchard, R. J. (2001). Human defensive behaviors to threat scenarios show parallels to fear-and anxiety-related defense patterns of non-human mammals. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 25(7-8), 761-770.

11. Card, G. M. (2012). Escape behaviors in insects. Current opinion in neurobiology, 22(2), 180-186.

12. Maack, D. J., Buchanan, E., & Young, J. (2015). Development and psychometric investigation of an inventory to assess fight, flight, and freeze tendencies: The fight, flight, freeze questionnaire. Cognitive Behaviour Therapy, 44(2), 117-127.

13. Roelofs, K., Hagenaars, M. A., & Stins, J. (2010). Facing freeze: social threat induces bodily freeze in humans. Psychological science, 21(11), 1575-1581.

14. Jeibmann, A., & Paulus, W. (2009). Drosophila melanogaster as a model organism of brain diseases. International journal of molecular sciences, 10(2), 407-440.

15. Markow, T. A. (2015). The natural history of model organisms: the secret lives of Drosophila flies. Elife, 4, e06793.

16. Pandey, U. B., & Nichols, C. D. (2011). Human disease models in Drosophila melanogaster and the role of the fly in therapeutic drug discovery. Pharmacological reviews, 63(2), 411-436.

17. Rubin, G. M., & Lewis, E. B. (2000). A brief history of Drosophila's contributions to genome research. Science, 287(5461), 2216-2218.

18. Analitis, F., Velderman, M. K., Ravens-Sieberer, U., Detmar, S., Erhart, M., Herdman, M., ... & Rajmil, L. (2009). Being bullied: associated factors in children and adolescents 8 to 18 years old in 11 European countries. Pediatrics, 123(2), 569-577.

19. Black, S., Weinles, D., & Washington, E. (2010). Victim strategies to stop bullying. Youth violence and juvenile justice, 8(2), 138-147.

20. Yoon, J. S., & Kerber, K. (2003). Bullying: Elementary teachers' attitudes and intervention strategies. Research in Education, 69(1), 27-35.

AUTOR

Jaime Grácio é psicólogo clínico licenciado pela Universidade de Lisboa. Tem desenvolvido prática clínica segundo o modelo cognitivo-comportamental nas doenças mentais graves e perturbações mentais comuns, tendo uma vasta experiência na dinamização de tratamentos psicossociais em contexto institucional. Doutor em ciências da vida, tem também desenvolvido trabalho de investigação, sendo o autor de vários artigos em revistas científicas internacionais peer-reviewed e capítulos de livros científicos. Atualmente trabalha no Centro Clínico e no Programa de Investigação Clínica Experimental da Fundação Champalimaud. É professor auxiliar convidado na NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, onde leciona principalmente temas relacionados com a psicologia médica e medicina comportamental.

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