Nas histórias da tradição folclórica, usavam-se as balas de prata como única forma de matar os grandes males, normalmente personificados em vampiros, lobisomens e bruxas, que sujeitavam as populações às suas crueldades.
Em educação costuma dizer-se, com razão, que não há balas de prata, ou seja: não há uma solução mágica e simples que consiga resolver um problema complexo. E se, em vez de andarmos aos tiros com balas de prata, tentássemos usar um fio dourado que ajudasse a combater a falta de professores, melhorar a sua satisfação e, simultaneamente, dar-lhes ferramentas para melhorar os resultados escolares e oportunidades de vida aos seus alunos?
É mais ou menos esta a ideia subjacente a uma das maiores reformas da profissão docente em Inglaterra, a que chamaram Golden Thread ou, em português, «fio dourado».
A ideia central é que todos os professores do país tenham acesso a formação contínua, desde a qualificação inicial até chegarem a diretores de escola. No esquema que se montou, existem essencialmente três grandes momentos: a formação inicial, a formação para professores no início de carreira e formações profissionais ao longo da carreira. Estes momentos de formação contínua estão assim encadeados e unidos por este fio dourado que liga cada etapa do desenvolvimento profissional dos professores.
Na prática, o professor começa a sua carreira com a formação inicial, que o habilita a dar aulas. Em Inglaterra, esta formação é bem diferente da portuguesa: muitas vezes, o professor tem uma licenciatura de base e posteriormente conclui um programa pós-graduado em educação, que lhe dá a dita habilitação para ser professor. Como já tive oportunidade de refletir num artigo anterior, esta formação inicial pode ter o formato de um mestrado clássico numa universidade ou, em alternativa, o candidato pode receber a qualificação para professor enquanto trabalha diretamente numa escola, numa espécie de estágio profissional.
A grande inovação vem no que se passa a seguir, quando já adquiriu a habilitação para ser professor. Na generalidade dos países do mundo, os professores, mal se formam, recebem uma turma e, sem mais formação, são lançados às feras, isto é, a turmas de crianças que muitas vezes tentam ativamente desfazer o trabalho dos professores. Não é nada fácil.
A ideia central é que todos os professores do país tenham acesso a formação contínua, desde a qualificação inicial até chegarem a diretores de escola
Sabendo disto, o Governo inglês decidiu financiar um sistema que dá a todos os professores o direito, após a sua formação inicial, a receberem uma formação contínua, que os acompanha ao longo dos dois primeiros anos em sala de aula. Durante este período, os professores recebem formação dividida em cinco temas-chave: gestão do comportamento dos alunos, pedagogia (por exemplo, como funciona a memória e a capacidade cognitiva dos alunos?), currículo, avaliação e comportamento profissional do professor.
A formação é lecionada num misto de sessões presenciais e online. As sessões online são possíveis graças ao desenvolvimento de plataformas digitais muito inovadoras, como o StepLab, que permite alojar diferentes módulos, desafios, vídeos e tarefas para os professores realizarem. A ideia é o professor aprender em pequenos passos ou subindo degraus (daí o nome StepLab, justamente como referência a um laboratório de passos ou degraus). Vale mais a pena aprender e treinar todos os dias, de forma consistente, uma pequena quantidade de informação do que dedicar um dia inteiro de formação pontual intensiva. Desta forma, criam-se hábitos e uma cultura de desenvolvimento profissional permanente.
O mais importante, talvez, é assinalar que, nestes dois primeiros anos de profissão, o professor recém-qualificado recebe também a mentoria de um docente mais velho e experiente da mesma escola. Esta mentoria não acontece de forma aleatória, pelo contrário: aplica um método chamado instructional coaching, que, à data, é a forma de desenvolvimento profissional de professores com evidência científica mais robusta. Envolve trabalho individualizado entre o professor e o seu mentor mais velho, com base no trabalho feito em sala de aula, através de uma sequência deliberada de observação, feedback e repetição. Em coerência com a ideia dos pequenos passos, este método exige que o trabalho se foque em doses pequenas de exercícios e competências específicas que o professor tem de treinar.
Nestes dois primeiros anos de profissão, o professor recém-qualificado recebe também a mentoria de um docente mais velho e experiente da mesma escola
Ao fim destes dois primeiros anos de formação contínua, abre-se um leque de formações sucessivas chamadas «Qualificações Profissionais Nacionais», normalmente com a duração de 18 meses. Podem ser uma formação em dada especialidade, que permite ao seu titular ter um papel destacado na escola nesse tema, por exemplo, em Matemática, Literacia, Comportamento ou Educação Especial. Por outro lado, estas formações também podem servir para progredir na carreira, por exemplo, para serem diretores de turma, adjuntos, subdiretores ou diretores de escola, agrupamento e também de creche e estabelecimento pré-escolar.
No planeamento de todos estes passos de formação contínua, houve uma grande preocupação de usar a melhor evidência científica disponível para desenhar os diferentes programas — recentemente documentados pelo meu colega Sam Sims e outros colegas do University College London e do Ambition Institute —, para perceber as técnicas que são realmente eficazes. Além de um processo de acreditação bastante restrito das entidades habilitadas para desenhar e ministrar estas formações, há ainda um robusto mecanismo de inspeção levado a cabo por um regulador independente que responde diretamente ao Parlamento, e não ao Governo.
A lógica por trás deste «fio dourado» de formação profissional parte da premissa de que a eficácia de um sistema de ensino nunca será superior à eficácia dos seus professores. Além disso, a evidencia de diversos países tem mostrado que a formação contínua traz grandes benefícios na satisfação dos professores, podendo ajudar a tornar a profissão atrativa e diminuindo substancialmente o número de docentes que abandona a profissão, fator importante dado o enorme problema de falta de professores que vários países, incluindo Portugal, atravessam neste momento.
Tive a sorte ter trabalhado diretamente nesta importante reforma desde o seu início, num projeto-piloto com cerca de 1900 professores, até à ampliação nacional das suas operações, apoiando atualmente muitas dezenas de milhares de professores e milhões de alunos em Inglaterra. Fica assim feita a minha declaração de interesses.
A formação contínua traz grandes benefícios na satisfação dos professores, podendo ajudar a tornar a profissão atrativa e diminuindo substancialmente o número de docentes que abandona a profissão
Um processo desta escala enfrenta, naturalmente, a resistência legítima de alguns professores, entidades e sindicatos. Além disso, estas reformas exigiram um financiamento avultado, um esforço para alargar um projecto desta envergadura, com controlo de qualidade, inovação tecnológica e uma complexa operacionalização no terreno, desde logo para emparelhar dezenas de milhares de professores com os seus mentores mais velhos — em todos os pontos do país!
Apesar dos enormes desafios, as reformas têm já mostrado resultados promissores nas avaliações independentes que são feitas. Por exemplo, o número de professores que reportaram continuar a querer dar aulas teve um aumento de quase 10 pontos percentuais no primeiro ano.
O tempo dirá qual o verdadeiro impacto deste «fio dourado» a longo prazo. Há, no entanto, um ponto que é essencial assinalar: o seu potencial para transformar a vida dos alunos. Há evidencia científica de que a formação contínua de professores tem grande impacto na melhoria das notas dos alunos, e até no aumento dos ordenados destes alunos em adultos. Alguns estudos realizados pelo Education Policy Institute, Ambition Institute e Frontier Economics mostram que a aposta em programas deste tipo pode ter um retorno 19 vezes superior ao seu investimento, e até gerar elevado crescimento económico por via do aumento dos ordenados futuros dos alunos — sobretudo dos que nasceram em contextos socioeconómicos mais desfavorecidos, que são, estatisticamente, quem tem maior probabilidade de ter professores menos eficazes.
A formação contínua de professores tem grande impacto na melhoria das notas dos alunos e até no aumento dos ordenados destes alunos em adultos
A razão por que me deu tanto gosto trabalhar numa reforma desta escala é mesmo o potencial de dar melhores oportunidades aos alunos que delas mais precisam. Como parte do plano de recuperação das aprendizagens perdidas durante a pandemia, o Governo inglês financiou a cem por cento o custo de toda a formação contínua do «fio dourado» para todas as escolas do país. Findo este período inicial, o financiamento será maior para escolas com maior percentagem de alunos desfavorecidos, ou em programas centrados em áreas de intervenção mais urgente, como o comportamento dos alunos, a Matemática e a Educação Especial.
Em educação podemos não ter balas de prata, mas será que implementar um «fio dourado» podia dar a Portugal mais e melhores professores e, com isso, melhores oportunidades para todos os alunos, sobretudo para os mais desfavorecidos?
As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente do autor e não refletem os princípios ou posições das organizações às quais está associado.
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