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Introdução

O ensino da leitura é uma das responsabilidades mais importantes, senão a mais importante, dos professores do 1.º ciclo do ensino básico. De acordo com a literatura, ensinar a ler requer diversos conhecimentos que os professores têm de dominar. O ensino da leitura constitui, por isso, uma tarefa complexa, à qual os professores têm, obrigatoriamente, de dedicar muito tempo e atenção.

Ensinar alunos de língua não materna a compreender o que lêem pode constituir uma tarefa particularmente complexa. Poderão os professores utilizar, no ensino da leitura, a língua materna de um aluno se este não dominar a língua de instrução? Como utilizar a língua de origem para aumentar a compreensão da leitura e, não menos importante, o empenho dos alunos multilingues? Howard (2022) responde a estas questões através da apresentação de uma abordagem que exemplifica como os professores podem utilizar um texto escrito na língua materna dos alunos para os ensinar a ler e compreender.

Estudo de caso (adaptado)

A professora Maria trabalha numa escola primária com alunos de diversas línguas, como o japonês, o árabe, o albanês, o russo e o mandarim. Durante as aulas, procura recorrer e tirar máximo proveito dos conhecimentos e das experiências individuais dos alunos. Esta é uma prática cultural denominada «fundos do conhecimento» (Gonzalez et al., 1993), que consiste, muito simplesmente, no aproveitamento e na valorização dos antecedentes linguísticos e culturais dos alunos. Isto é, em vez de se considerar os alunos sob uma perspectiva deficitária, a partir da qual as dificuldades e/ou os desconhecimentos são destacados, põem- -se os pontos fortes dos alunos no centro da aprendizagem. Para um professor de alunos multilingues, tal significa que o conhecimento dos alunos sobre a língua materna deve ser valorizado e utilizado nas tomadas de decisão. De acordo com Howard (2022), a utilização de textos escritos na língua materna constitui uma excelente forma de integrar os antecedentes linguísticos dos alunos no ensino da leitura. Porquê? Considere o seguinte caso.

Hina é uma aluna japonesa que frequenta o 2.º ano de escolaridade. Iniciou a alfabetização na primeira língua e, embora esteja num país onde não se fala japonês, continua a aprender a língua materna numa escola japonesa, aos sábados. Na escola que frequenta durante a semana, aprende inglês. Segundo a professora, demonstra dificuldades na leitura. Além disso, demonstra pouco empenho na aprendizagem. 

Maria centrou-se nos conhecimentos de japonês que Hina adquiriu até então para a ajudar a progredir no inglês. A professora procurou, especificamente, a aumentar o empenho e a compreensão da leitura de Hina no inglês a partir da integração de textos escritos em japonês. Uma vez que a activação de esquemas constitui, segundo a literatura, uma estratégia essencial para aumentar a compreensão, Maria esperava que Hina, ao ler textos escritos na língua materna, aumentasse o desempenho no japonês. Por isso, Maria seleccionou um conjunto de textos ajustados ao nível de leitura de Hina e desenvolveu o seguinte plano: i) primeiro, Hina teria de ler um texto em japonês; ii) após a leitura, seria introduzido o mesmo texto, mas em inglês, a par da aplicação de estratégias utilizadas, no ensino da língua não materna, como, por exemplo, a leitura em coro. Na Figura 1, apresenta-se o plano completo.

 

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Figura 1. Plano da aula

Ler em japonês e em inglês

Na primeira aula, Hina observou a capa do livro escrito em japonês e disse à professora que não conhecia nenhuma palavra. Maria encorajou Hina a continuar a tentar e, após algumas tentativas, leu correctamente algumas palavras. Quando terminou o livro, pegou de imediato no livro escrito em inglês e começou a lê-lo. Depois de completar a primeira frase, Hina gritou de surpresa. Voltou ao texto escrito em japonês e leu com fluência a primeira frase. Entusiasmada, disse à professora: «I like to read. Oh! 私は読むのが好き» (em português: «Eu gosto de ler»). Hina continuou a alternar a leitura entre o japonês e o inglês, reforçando assim o conhecimento de ambas as línguas.

Maria percebeu que abordar os textos escritos em japonês e inglês em partes separadas da aula não é a estratégia mais adequada. Hina não procedeu de forma linear à leitura dos textos escritos nas duas línguas. Adoptou, sim, uma abordagem circular, deslocando-se entre os textos em japonês e em inglês para criar significado, uma vez que utilizou partes que conhecia de cada texto.

Para apoiar a compreensão da leitura de Hina, Maria adoptou o reconto como estratégia de ensino. As histórias abordadas na aula foram transcritas. Hina respondeu também a perguntas de interpretação (Figura 2). Depois de terminar a leitura dos textos em japonês e em inglês, Hina foi capaz de recontar a história. Foi capaz de nomear, por exemplo, as personagens, o cenário, o problema da história e a respectiva formulação. Além disso, no final da aula, Hina pediu a Maria para guardar alguns livros na sala de aula e levar outros para casa, demonstrando interesse e motivação para a leitura.

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Figura 2. Actividade de reconto

Envolvimento dos pais

Após algumas aulas, Maria recebeu um e-mail da mãe de Hina. Disse-lhe que os livros japoneses que Hina tinha estado a ler foram escritos com caracteres chineses. Explicou à professora que, apesar de Hina conhecer hiragana e katakana, estava a aprender os caracteres chineses (enquanto os caracteres chineses, ou kanji, consistem em ideogramas que correspondem a palavras, o hiragana e o katakana são dois dos silabários da língua japonesa). Embora um colega japonês tivesse olhado para os textos seleccionados por Maria, este aspecto tinha-lhe escapado.

A mãe de Hina ofereceu-se para emprestar alguns livros escritos em hiragana, katakana e inglês para a filha ler na escola. Hina estava muito entusiasmada. Mais uma vez, moveu-se, de forma alternada, entre os textos japoneses e ingleses. Maria verificou um aumento significativo na fluência de leitura de Hina desde que começou a ler textos escritos em hiragana e katakana. Além disso, Hina demonstrou mais confiança, interesse, motivação e proficiência no inglês. A motivação para a leitura foi observada também pela mãe, uma vez que Hina passou a ler um livro, todas as noites, à irmã mais nova. Enviou um e-mail a Maria, referindo: «Estou surpreendida e muito feliz por a Hina estar a melhorar! Ela tenta ler livros em inglês à irmã mais nova, antes de ir para a cama. Não posso acreditar!»

Considerações finais

De acordo com Howard (2022), é fundamental os professores recolherem o máximo de informação possível sobre os alunos de segunda língua para implementarem esta prática de forma adequada. Considere os seguintes aspectos:

1) consulte o professor de língua não materna da sua escola e os encarregados de educação para determinar as competências linguísticas do(s) aluno(s);

2) informe-se das diferenças e semelhanças entre a língua materna e não materna do(s) aluno(s), em fonologia, sintaxe, morfologia, ortografia e semântica. As semelhanças entre línguas podem constituir excelentes oportunidades de ensino. Além disso, permita-se aprender com o(s) aluno(s). Segundo Howard (2022), assumir-se como aprendiz (da língua materna do(s) aluno(s)) pode ser bastante benéfico;

3) inteire-se do sistema educativo do país de origem do(s) aluno(s). É fundamental ter em conta este aspecto. O conhecimento adquirido irá permitir-lhe, por exemplo, seleccionar textos adequados;

4) procure a colaboração dos pais ou encarregados de educação do(s) aluno(s), uma vez que podem fornecer informações cruciais para o desenvolvimento de oportunidades de aprendizagem;

5) seleccione, em conjunto com os pais ou encarregados de educação, textos escritos na língua materna do(s) aluno(s), para se assegurar de que as traduções estão ajustadas ao(s) respectivo(s) nível de leitura. Além de expor os alunos a textos escritos na língua materna, existem, segundo Howard (2022), outras estratégias para os envolver em actividades de translinguagem. Os professores podem, por exemplo, dar aos alunos a oportunidade de lerem textos escritos na língua materna e, posteriormente, responderem a perguntas de interpretação na língua não materna (ou vice-versa).

Principais ideias a reter

Uma vez que o número de estudantes multilingues, com formações linguísticas diversas, tende a aumentar, os professores têm, necessariamente, de adoptar métodos inovadores, que apoiem a aquisição de competências de literacia na língua não materna.

AUTORES

João Lopes

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João Arménio Lamego Lopes dirige o projeto AaZ – Ler Melhor, Saber Mais. Licenciado em Psicologia pela Universidade do Porto (1981), Mestre em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento (Universidade do Porto, 1991) e doutorado em Psicologia da Educação pela Universidade do Minho (1996). Professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho desde 1995.

Professor Associado com Agregação, da mesma Universidade (2004). Director do Departamento de Psicologia Aplicada (2015-2019) e do Mestrado em Temas de Psicologia da Educação da UM. Director do Programa de Doutoramento em Psicologia Aplicada para os países da CPLP. Presidente do Conselho Cientifico-Pedagógico da Formação Contínua de professores (2014-2018), representante de Portugal no CERI-OCDE (2015-2017) e membro do Conselho Geral do IAVE (2013-2018).

Soraia Araújo

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Soraia Araújo é doutoranda em Psicologia Aplicada, na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. Licenciou-se em Psicologia, em 2018, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e concluiu o Mestrado em Psicologia Aplicada, em 2020, na Universidade do Minho.

Integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, desde 2019, aquando da realização da sua dissertação de mestrado, intitulada “Formação Contínua de Professores: Necessidades, Participação e Barreiras”. No mesmo grupo de investigação, encontra-se a desenvolver a sua tese de doutoramento sobre as dificuldades de aprendizagem inicial da leitura. Integra, ainda, o Programa AaZ – Ler Melhor, Saber Mais, onde colabora, essencialmente, na escrita de textos de apoio sobre o ensino da leitura, dirigidos a professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico.

Os seus interesses de investigação centram-se na área da Psicologia e da Educação. Especificamente, ensino da leitura e escrita, dificuldades de aprendizagem, perturbações do neurodesenvolvimento, métodos de ensino e formação de professores.

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