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Muitas pessoas, dentro e fora do sistema educativo, acham que as crianças de hoje são nativos digitais capazes de executar múltiplas tarefas em simultâneo, dotadas de competências cognitivas especiais que permitem que aprendam de uma forma diferente das gerações anteriores. Temos uma revelação a fazer: isso é um mito.

Os nativos digitais não existem e as crianças (tal como qualquer outro ser humano) não são capazes de executar múltiplas tarefas em simultâneo. Paul A. Kirschner e Pedro De Bruyckere publicaram um artigo a este respeito.

Já alguma vez pediu a uma pessoa mais nova para o ajudar a utilizar uma tecnologia? Se já o fez, talvez tenha ficado impressionado com a rapidez com que essa pessoa resolveu um desafio tecnológico que, a si, o deixou bloqueado. Talvez situações como esta contribuam para alimentar a ideia de que os mais novos são nativos digitais e peritos em meios de comunicação social que têm de nos ajudar a nós, imigrantes digitais. Contudo, a investigação indica que esta visão é errónea, tal como a crença de que as crianças conseguem executar várias tarefas em simultâneo. 

O termo nativo digital foi cunhado por Marc Prensky em 2001 para designar um grupo crescente de crianças, adolescentes e, atualmente, jovens adultos (ou seja, pessoas nascidas depois de 1984; o início oficial desta alegada geração) que estiveram em contacto com tecnologias digitais durante toda a sua vida. Devido ao seu contacto permanente com tecnologias digitais, Prensky defende que esta geração possui características específicas, ou até mesmo exclusivas, que a distinguem totalmente das gerações anteriores. Contudo, as suas afirmações não se baseiam numa investigação exaustiva dessa geração nem num estudo minucioso daqueles que a constituem.  Resultam apenas de uma racionalização de fenómenos e comportamentos observados por Marc Prensky que, segundo as palavras do próprio, via as crianças "rodeadas de computadores, videojogos, leitores de música digitais, câmaras de vídeo, telemóveis, e a utilizarem todos estes e outros brinquedos e dispositivos da era digital" (2001, p.1). 

O que nos diz a ciência

A investigação, e não a mera observação, aponta para uma realidade diferente. Um número crescente de estudos de investigação realizados em diferentes países e contextos culturais (por exemplo, na Áustria, Austrália, Canadá, Suíça e Estados Unidos), e revistos por Kirschner e De Bruyckere (2017), concluíram que os estudantes universitários, nascidos após o mágico ano de 1984, não possuem, afinal, conhecimentos tecnológicos profundos, e que o conhecimento que, de facto, possuem se limita geralmente às possibilidades e ao uso de competências informáticas básicas, como o envio e-mails, o envio de mensagens de texto, a utilização do Facebook® e a navegação na Internet. Também se provou erróneo o pressuposto de que a geração Google® é versada na Web. Um estudo de Rowlands et al. (2008), por exemplo, concluiu que: "…muitos comentários profissionais, artigos de escrita popular e apresentações em PowerPoint sobrestimam o impacto das TIC nos mais jovens, e que a omnipresença da tecnologia nas suas vidas não se traduziu num aumento de competências de obtenção, pesquisa e avaliação de informação." (p. 308). 

Mas talvez a realidade seja outra no novo milénio. Talvez os alegados nativos digitais não tenham nascido depois de 1984, mas sim depois de 1994 ou de 2004? Uma vez mais, a resposta da investigação é "não". Embora pareça que os estudantes utilizam uma grande quantidade e variedade de tecnologia para comunicarem, para se manterem ligados aos amigos e para se manterem a par do que se passa no mundo, o facto é que a utilizam principalmente para fins de "emancipação pessoal e de entretenimento, e nem sempre se mostram digitalmente instruídos quando recorrem a tecnologia em contexto académico. Isto torna-se especialmente evidente quando utilizam tecnologia enquanto consumidores de conteúdos e não enquanto criadores de conteúdos especificamente para fins académicos" (Kennedy e Fox, 2013, p. 76).

Talvez os verdadeiros imigrantes digitais sejam… os estudantes mais velhos (na altura do estudo, nascidos antes de 1984, e atualmente com mais de 30 anos), que demonstraram possuir mais características atribuídas aos nativos digitais do que os próprios nativos digitais, conforme demonstraram Romero, Guitert, Sangrà e Bullen (2013).

O mito da capacidade de executar múltiplas tarefas em simultâneo (ou "multitasking")

Existe um mito estreitamente relacionado com o da existência dos "nativos digitais", que é a crença de que as pessoas conseguem executar múltiplas tarefas em simultâneo, uma capacidade geralmente mais atribuída às crianças e às mulheres. Em que consiste esta alegada capacidade humana?  A definição correta seria: a capacidade de executar em simultâneo, ou paralelemente, duas ou mais tarefas que exigem processamento de informação (ou raciocínio). Isto significa que as pessoas seriam capazes de realizar várias tarefas de raciocínio em simultâneo, ou seja, tarefas que requerem processamento cognitivo ou processamento de informação (por exemplo, ler um e-mail e estar atento a uma aula ao mesmo tempo, ou conversar com alguém online e participar num grupo de trabalho ao mesmo tempo).

É verdade que os seres humanos são capazes de fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo, mas apenas se todas as atividades que estiverem a executar — exceto uma — forem totalmente automatizadas (ou seja, isentas de processamento cognitivo). Uma das tarefas poderá envolver processamento cognitivo (por exemplo, é possível caminhar e falar ao mesmo tempo, embora até mesmo um ato tão simples como este já tenha provocado algumas quedas e outros tipos de acidentes). Contudo, a revisão levada a cabo por Kirschner e De Bruyckere (2017) voltou a comprovar que as evidências científicas são muito claras: a execução de múltiplas tarefas em simultâneo, conforme descrito anteriormente, não é humanamente possível e, mais importante ainda, em contextos reais de aprendizagem este comportamento está associado à falta de atenção, ao processamento superficial de informação e a piores resultados de aprendizagem.

Tanto o mito do "nativo digital" como o mito da capacidade de executar múltiplas tarefas em simultâneo foram utilizados como argumentos para mudar o sistema educativo. É fundamental evitar cair no erro de acreditar que as crianças possuem talentos e habilidades que, na verdade, não possuem. As aptidões e competências atribuídas a esta geração de discentes funcionam como quaisquer outras aptidões e competências, ou seja, têm de ser devidamente ensinadas e adquiridas antes de poderem ser aplicadas. Mais importante ainda, talvez devêssemos ensinar esta geração a focar-se em vez de adaptarmos o nosso sistema de ensino à alegada capacidade humana de executar múltiplas tarefas em simultâneo, uma vez que isso é prejudicial à aprendizagem.

 

E não, as mulheres também não conseguem executar várias tarefas em simultâneo.

Referências

Kennedy, D., & Fox, R. (2013, April 19). ‘Digital natives’: An Asian perspective for using learning technologies. International Journal of Education and Development using ICT [Online], 9(1), 64-79.

Kirschner, P. A., & De Bruyckere, P. (2017). The myths of the digital native and the multitasker. Teaching and Teacher Education, 67, 135-142. 

Prensky, M. (2001). Digital Natives Digital Immigrants. On the Horizon NCB University Press, 9(5), 1-6.

Romero, M., Guitert, M., Sangrà, A., & Bullen, M. (2013). Do UOC students fit in the Net Generation profile? An approach to their habits in ICT use. The International Review of Research in Open and Distance Learning, 14(3), 158-181.

AUTORES

Paul A. Kirschner (1951) é professor emérito de Psicologia da Educação na Open University dos Países Baixos, Doutor Honoris Causa na Universidade de Oulu, na Finlândia e professor convidado na Universidade de Ciências Aplicadas Thomas More em Flandres, na Bélgica. Antes de se reformar foi homenageado na qualidade de professor universitário pela Open University dos Países Baixos e na qualidade de professor convidado pela Universidade de Oulu, na Finlândia. 

Publicou mais de 350 artigos científicos e centenas de artigos populares e blogues para professores e administradores de escolas em inglês (3-Star Learning Experiences: An Evidence-Informed Blog for Learning Professionals) e holandês. Também é (co)autor de vários livros de sucesso, incluindo Ten Steps to Complex LearningUrban Myths about Learning and Education e More Urban Myths About Learning and Education, além de dois livros ainda por publicar Evidence Informed Learning Design e How Learning Happens: Seminal Works in Educational Psychology and What They Mean in Practice. Também é chefe de redação do Journal of Computer Assisted Learning e editor de comissionamento do Computers in Human Behavior. 

Pode ler mais sobre Paul Kirschner ou entrar em contacto através da sua página web.

Pedro De Bruyckere (Doutorado, 1974) é cientista educativo da Universidade Arteveldehogeschool, em Ghent desde 2001 e investigador de pós-doutoramento da Universidade de Leiden, na Holanda desde 2018. Coescreveu vários livros em holandês, nos quais desmistifica mitos populares sobre a geração Y e Z, a educação e a cultura popular. Pedro é requisitado com frequência como palestrante. Um dos seus pontos mais fortes é o facto de falar sobre coisas sérias com humor. Em 2015, foi publicado o livro Urban Myths about Learning and Education a nível mundial pela Academic Press, um livro que entrou para a lista do The Guardian como um dos 10 livros que todos os professores devem ler e que foi coescrito por Pedro. Este livro foi traduzido em sueco e chinês.

Em 2018, seguiu-se o seu segundo livro publicado a nível internacional: The Ingredients for Great Teaching. E, em 2019, a Routledge publicou a sequela de desmistificação More Urban Myths about Learning and Education. Pedro dedica-se bastante ao seu blogue ThEconomyOfMeaning.com.

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