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Há capacidades cognitivas fundamentais de caráter específico, é o caso do conhecimento simbólico dos números, e há outras de caráter mais geral, tais como a compreensão verbal, as capacidades espaciais e o raciocínio não-verbal. Algumas são mais influentes na idade pré-escolar e no primeiro ciclo, outras ganham mais importância no segundo e terceiro ciclos. O que poderá explicar que algumas crianças aprendam matemática com facilidade, enquanto outras enfrentam muitas dificuldades?

Tonje Amland e seus colegas da Universidade de Oslo realizaram uma meta-análise, publicada em 2024 no artigo «Cognitive factors underlying mathematical skills: A systematic review and meta-analysis». Esta revisão sistemática de mais de quatro centenas de estudos internacionais mostra que há três capacidades cognitivas fundamentais durante todo o percurso escolar, e uma quarta particularmente importante nas fases iniciais.

É fundamental compreender os números e os seus símbolos

O conhecimento simbólico dos números (a habilidade de reconhecer dígitos, comparar números e identificar a ordem correta) surge como o preditor mais forte do desempenho matemático em estudos transversais e longitudinais. Assim, crianças com bons conhecimentos simbólicos sobre os números terão melhores desempenhos em praticamente todos os domínios da matemática.

Esta habilidade permite trabalhar números de forma abstrata, requisito essencial desde o início, que se mantém forte preditor ao longo da escolaridade. Quanto mais cedo esta habilidade for promovida, melhores serão os resultados. Por exemplo, crianças que desde a pré-escola aprendam a associar corretamente os números às suas quantidades, saibam que 6 é maior que 4 e reconheçam padrões numéricos simples, como sequências que se repetem ou crescem regularmente (por exemplo, 2, 4, 2, 4; 2, 4, 6, 8) tendem a ter bom desempenho matemático no primeiro ciclo. Estas habilidades estão na base da aprendizagem do cálculo, da compreensão de equações e da resolução de problemas mais complexos nos ciclos seguintes.

A meta-análise sugere ainda que tais habilidades são particularmente preditivas em contextos educacionais que exigem raciocínio abstrato precoce. Nesses casos, o conhecimento simbólico dos números prevê, inclusive, o sucesso em exames padronizados de avaliação curricular.

A linguagem ajuda (sobretudo nos problemas)

A linguagem é um dos pilares da aprendizagem escolar. As habilidades fonológicas, tais como a consciência dos sons da fala, parecem ter um papel específico. Os estudos mostram que são preditoras do desempenho em aritmética quando avaliadas em simultâneo, embora não sejam preditoras do desempenho futuro. Uma possível explicação é, nas fases iniciais, a aritmética depender parcialmente de um código fonológico, através do qual os factos numéricos (por exemplo, as tabuadas) são armazenados como representações fonológicas na memória. Esta influência, embora importante, parece ser mais passageira, perdendo impacto com o tempo. Em contraste, a compreensão verbal revela-se particularmente importante para resolver problemas que exigem interpretar o que está escrito para saber o que é pedido e selecionar a estratégia adequada. A meta-análise mostra que a linguagem não está só relacionada com o desempenho matemático geral, também é especialmente relevante nos problemas com enunciado.

Isto acontece porque, para resolver um problema matemático em formato escrito, a criança precisa de compreender o enunciado, identificar as relações entre os dados, selecionar os passos certos e manter coerência ao longo da resolução. Todas estas operações envolvem habilidades linguísticas. Contudo, a sua importância varia com a escolaridade. Em crianças da pré-escola e do primeiro ciclo, a linguagem não se destaca tanto como o conhecimento simbólico, mas, a partir do segundo ciclo, torna-se um dos principais fatores associados ao sucesso matemático, sobretudo em tarefas complexas, tais como problemas aplicados, representação de relações ou modelação de situações matemáticas do quotidiano.

Os estudos incluídos nesta revisão mostram também que a linguagem influencia a compreensão dos conceitos matemáticos mais abstratos, como proporções, frações e equações, uma vez que exigem a capacidade de compreender e utilizar corretamente símbolos matemáticos e representações formais e vocabulário matemático mais sofisticado.

Capacidades espaciais e não-verbais contam (e muito)

As capacidades espaciais incluem a visualização de relações, a manipulação mental de objetos e a representação da informação de forma visual. Estão fortemente associadas a domínios como a geometria, a visualização de padrões e a resolução de problemas complexos. A sua influência aumenta conforme as tarefas matemáticas se tornam mais exigentes em abstração e representação simbólica. Por exemplo, uma boa capacidade de rotação mental e de manipulação visual de objetos pode ajudar a compreender transformações geométricas ou relações espaciais entre figuras. Estas competências não são relevantes apenas para a geometria, mas também para compreender funções e representações gráficas.

Paralelamente, o raciocínio não-verbal é outro dos preditores mais consistentes do desempenho matemático, em especial nas fases intermédias e mais avançadas da escolaridade. É fundamental, por exemplo, para reconhecer padrões, formular hipóteses, testar alternativas e justificar raciocínios.

Segundo a meta-análise, esta forma de inteligência está particularmente ligada ao sucesso em contextos de aprendizagem mais abertos ou na resolução de problemas não-rotineiros, sublinhando a importância de ambientes de aprendizagem ativos e desafiantes.

Sentido intuitivo de quantidade: no início importante, com impacto limitado depois

A quarta capacidade identificada na meta-análise diz respeito a um aspeto específico da cognição numérica: o sentido intuitivo da quantidade.

Nos anos iniciais, a capacidade intuitiva de estimar e comparar quantidades sem contar (o sistema numérico aproximado) pode facilitar a aprendizagem inicial da matemática. Este sentido intuitivo do número está presente logo nos primeiros meses de vida, muito antes de se aprender a contar. Envolve a capacidade de perceber e comparar quantidades de forma imediata, sem contagem. Trata-se de uma capacidade que permite, por exemplo, reconhecer que um conjunto de oito objetos é maior do que outro com cinco, apenas num olhar rápido. Embora pouco preciso, é funcional nos primeiros anos e estabelece as bases de aprendizagem de conceitos mais formais.

Este resultado da meta-análise confirma o que já evidenciámos noutro artigo: a compreensão dos números em termos não simbólicos e a capacidade de estimar quantidades ainda sem recorrer a símbolos formais são passos essenciais no início do percurso de aprendizagem. Estas capacidades intuitivas servem de ponte ao desenvolvimento posterior do conhecimento simbólico. No entanto, os dados indicam que a influência do sentido do número tende a diminuir conforme as crianças avançam na escolaridade, dando lugar a preditores mais fortes como os já referidos anteriormente.

E a memória?

A memória de trabalho é uma capacidade geral que também influencia naturalmente o desempenho matemático. Contudo, os resultados mostram uma influência menos consistente do que a dos preditores anteriores.

Nos primeiros anos, a memória visuoespacial tem um papel maior, ajudando, por exemplo, a manter imagens mentais ou sequências de passos, como nas tarefas de geometria ou estimativas com material concreto. Mais tarde, a memória de trabalho verbal passa a ser mais relevante, especialmente para cálculo mental, resolução de problemas, tarefas aritméticas e memorização de procedimentos.

    O que explica um bom desempenho a matemática?

    O que se pode fazer?

    • Promover o sentido não-simbólico do número desde o pré-escolar com atividades que envolvam discriminação e comparação de quantidades sem contar (como jogos de estimativa ou subitizing, em que a criança reconhece pequenas quantidades num olhar rápido). Estas atividades fortalecem o sistema numérico aproximado;
    • Em paralelo, treinar o conhecimento simbólico dos números com atividades de contagem verbal, identificação de dígitos, comparação numérica explícita e associação de um número a uma quantidade, facilitando a transição para representações mais abstratas. O uso de material manipulável como cartões com números, cubos de contagem ou jogos de pares numéricos pode ajudar nesta aprendizagem;
    • Promover o uso de estratégias de leitura e compreensão de textos para resolver problemas matemáticos, sobretudo a partir de meados do primeiro ciclo;
    • Incentivar a crianças a usar jogos e atividades que envolvam capacidades espaciais, como construções com blocos, puzzles ou rotação mental de figuras;
    • Valorizar atividades que desenvolvam a capacidade de resolução de problemas novos, incentivando o raciocínio lógico;
    • Estimular a memória de trabalho, por exemplo, em jogos que exigem manter e manipular informação, como jogos de sequências e desafios lógicos.

    AUTORES

    Luís Querido é psicólogo, doutorado em Psicologia Cognitiva e licenciado (pré-Bolonha) pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FPUL), especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, com especialidade avançada em Neuropsicologia, pela Ordem dos Psicólogos Portugueses.

    Psicólogo Clínico/Neuropsicólogo no Instituto de Psicologia das Relações Humanas, e no Serviço à Comunidade da FPUL nas Unidades de Intervenção de Neuropsicologia Clínica Cognitiva (NCC) das Dificuldades Específicas da Aprendizagem e NCC, do Envelhecimento e das Demências, e em clínica privada, desde 2000.

    Colaborou e colabora em vários projetos de investigação, entre eles:

    • Estudo Psicolinguístico Longitudinal no âmbito do Plano Nacional de Leitura intitulado «Estabelecimento de níveis de referência do desenvolvimento da leitura e da escrita do 1.º ao 6.º ano de escolaridade», investigador responsável pela secção de estudo «Escrita e Conhecimento Ortográfico», de 2008 a 2010;
    • «Influência da consciência morfológica e do vocabulário nas habilidades de leitura e de escrita em estudantes universitários». FPUL (2016-presente).
    • Estudos de adaptação e validação do Coin in Hand - Extended Version, versão revista do Coin in Hand Test (Kapur, 1994), numa amostra portuguesa. Instituições intervenientes: FPUL, Universidade de Granada, Universidade de Harvard (2017-presente).

     Os seus trabalhos de investigação inserem-se no âmbito da Psicologia Cognitiva da Leitura, da Escrita e da Matemática.

    Sandra Fernandes é Professora Auxiliar da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FPUL), onde tem vindo a lecionar, desde 2001, unidades curriculares no âmbito das Ciências Cognitivas, entre elas, Perceção, Atenção e Memória, Perturbações Específicas do desenvolvimento Cognitivo e Intervenções Psicoeducacionais. Psicóloga Clínica e da Saúde, com especialidade avançada em Neuropsicologia, pela Ordem dos Psicólogos Portugueses.

    Doutorada em Psicologia Cognitiva pela FPUL, com tese intitulada «Aprendizagem da Leitura no Português Europeu: Relações entre Fluência na Leitura Oral, Vocabulário e Compreensão em Leitura». Coordenadora responsável pelas Unidades de Intervenção de Neuropsicologia Clínica Cognitiva (NCC) das Dificuldades Específicas da Aprendizagem e NCC do Envelhecimento e das Demências do Serviço à Comunidade da FPUL. Editora da Revista Iberoamericana de Diagnóstico y Evaluación - e Avaliação Psicológica.
     
    Os seus interesses de investigação centram-se nos Processos Cognitivos envolvidos no desenvolvimento da Leitura (e compreensão em leitura) e da Escrita.

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