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Antes de aprenderem a contar, as crianças já têm uma noção de quantidade. Esta capacidade de comparar quantidades é inata e pode ser preditora do desempenho na matemática, mais tarde na vida escolar. Um grupo de investigadores mostra como esta relação se verifica logo na primeira infância.

Há uma influência mútua entre a capacidade das crianças para comparar quantidades, sem contar, e o seu desempenho na matemática. Foi a esta conclusão que chegaram Elliot, Feigenson, Halberda e Libertus1 num recente estudo longitudinal com crianças entre os 3 e os 5 anos, com pais com níveis de educação relativamente elevados, nos EUA. Esta foi a primeira investigação a analisar, nestas idades, a relação bidirecional entre a capacidade de comparar quantidades e o desempenho a matemática.

Os autores testaram as mesmas crianças em três momentos distintos com uma tarefa que avaliava a precisão do Sistema Numérico Aproximado (SNA) – tarefa de comparação numérica não simbólica – e um teste estandardizado de avaliação de matemática (que incluía contagem verbal de objetos, comparação de números árabes, leitura de numerais e resolução de problemas simples de adição e subtração). 

A relação entre ambos foi evidente. A precisão do SNA do momento inicial relacionou-se com a habilidade matemática posterior das crianças (isto é, foi preditora) e o desempenho inicial em matemática também se revelou um preditor importante da precisão do sistema numérico aproximado das crianças. Houve assim, ao longo do tempo, uma influência (e uma melhoria) mútua entre os dois, como mostra este estudo pioneiro na investigação do valor preditivo do desempenho em matemática (simbólico) para o sistema numérico aproximado em crianças.

A importância de saber estimar quantidades

A questão de tentar identificar os precursores cognitivos específicos do desempenho em matemática tem sido alvo de muitos estudos2. Além dos fatores cognitivos gerais, como a linguagem, a memória de trabalho e as funções executivas, a capacidade de representar e manipular quantidades aproximadas sem símbolos formais (e.g., dígitos ou «palavras-número») tem sido sugeridacomo preditor do desempenho na matemática escolar. O julgamento numérico aproximado, portanto, impreciso ou inexato, é comum a humanos e animais não humanos, sendo, assim, considerado uma capacidade primitiva subjacente a um sistema não verbal que permite representar quantidades e é designado por sistema numérico aproximado (SNA). Esta faculdade está presente desde muito cedo (em recém-nascidos)4, emerge independentemente da linguagem ou da educação matemática, aprimora-se com o desenvolvimento, e a sua precisão diminui com o aumento das quantidades numéricas e com a proximidade (rácio) das mesmas (por exemplo, 11 e 10 são mais próximos do que 12 e 6, no primeiro caso temos um rácio de 1.11 e no segundo um rácio de 2). A pergunta «Qual destes dois conjuntos tem mais pontos?» é um exemplo concreto de uma situação que avalia a habilidade não simbólica (ver figura em baixo). Estas competências primárias constituem a base para o desenvolvimento de outras secundárias simbólicas (por exemplo, contagem, comparação de numerais, representação numa linha numérica, operações aritméticas). Ambas fazem parte do sentido do númeroa, quando definido como um conjunto de componentes inter-relacionados que mudam com a idade e com a experiência, com diferentes dimensões que se revelam perante diferentes situações e tarefas numéricas. 
 

Na verdade, não se encontram na literatura dois investigadores que definam o sentido do número da mesma forma5. Trata-se de uma expressão usada para descrever uma grande variedade de conceitos matemáticos relevantes com mais de 30 construtos6, ou seja, componentes. Vários aspetos do sentido do número (por exemplo, estimação de quantidades) são eles próprios heterogéneos, envolvendo diferentes competências, de caráter simbólico e não simbólico7.

Neste contexto, e de acordo com o que foi referido anteriormente, o sistema numérico aproximado não simbólico está subjacente à quantificação sem contagem verbal e permite levar a cabo comparações e operações aritméticas de adição, subtração, multiplicação e divisão aproximadas, usando representações quantitativas intuitivas. Por oposição às representações simbólicas exatas, estas dão-nos apenas valores aproximados, com a incerteza e a imprecisão a crescer com a quantidade a representar. 

Antes deste estudo realizado com crianças dos 3 aos 5 anos, havia já provas da influência das capacidades numéricas simbólicas no aprimoramento da capacidade de estimar quantidades, mas apenas em adultos. Por exemplo8, adultos portugueses que não receberam educação em matemática apresentaram menor precisão a prever quantidades do que os que adquiriram competências numéricas simbólicas através de instrução formal.

Podem (e devem) o sentido do número e, em particular, o SNA ser ensinados?

Os dados científicos sugerem que o sentido do número, de um modo geral, e o sistema numérico aproximado (SNA), em particular, podem e devem ser ensinados de modo a promover o bom desenvolvimento das habilidades matemáticas.

O SNA está para a matemática como a Consciência Fonémica está para a leitura9

Atendendo a que se considera que um bom sentido do número10 inclui: a) fluência em estimar e julgar quantidades, b) reconhecer resultados irracionais, e c) passar por diferentes representações e usar (escolher) a mais apropriada; estas capacidades devem ser promovidas.

Assim, é fundamental na pré-escola e no 1.º ano de escolaridade:

  1. incentivar as crianças a falar sobre números, a lidar com eles e suas relações, aprendendo a linguagem abstrata da matemática;
  2. treinar o reconhecimento rápido de pequenas quantidades, recorrendo a materiais concretos – o chamado subitizing
  3. treinar a comparação de quantidades (e de números); 
  4. desenvolver a habilidade de usar uma linha numérica de representação; 
  5. promover o uso de estratégias de contagem rápidas e eficientes; 
  6. estimular o conhecimento conceptual das operações aritméticas básicas;
  7. desenvolver o raciocínio aritmético; 
  8. dar a conhecer e praticar procedimentos aritméticos;
  9. proporcionar oportunidades de resolução de problemas em situações aritméticas de caráter introdutório;
  10. treinar a recuperação rápida (automática) de factos aritméticos (tabuadas). 

De acordo com o estudo de Elliot e colaboradores (2019), anteriormente citado, o sistema numérico aproximado desempenha um papel importante no desenvolvimento das representações simbólicas e estas, por sua vez, permitem que as crianças refinem as representações não simbólicas através da compreensão de que conjuntos de objetos podem ser representados com símbolos abstratos, que podem ser numericamente comparados. A instrução concertada e o treino de ambas as capacidades, simbólicas e não simbólicas, desde cedo, conduzirão ao sucesso na aprendizagem da matemática.

Referências

a Do inglês «number sense»

1 Elliott, L., Feigenson, L., Halberda, J., & Libertus, M. E., «Bidirectional, Longitudinal Associations Between Math Ability and Approximate Number System Precision in Childhood», Journal of Cognition and Development, 20(1), 2019, pp. 56-74.

2 Por exemplo, Chu, F. W., vanMarle, K., & Geary, D. C., «Predicting children's reading and mathematics achievement from early quantitative knowledge and domain-general cognitive abilities», Frontiers in psychology, 7, 2016, 775.

3 Ginsburg, H. P., Lee, J. S., & Boyd, J. S., «Mathematics education for young children: What it is and how to promote it», Social Policy Report, 22(1), 2008, pp. 1-24.

4 Antell, S. E., & Keating, D. P., «Perception of numerical invariance in neonates», Child development, 54(3), 1983, pp. 695-701.

5 Gersten, R., Jordan, N. C., & Flojo, J. R., «Early identification and interventions for students with mathematics difficulties», Journal of learning disabilities, 38(4), 2005, pp. 293-304.

6 Berch, D. B., «Making sense of number sense: Implications for children with mathematical disabilities», Journal of learning disabilities, 38(4), 2005, pp. 333-339.

7 Por exemplo, Tosto, M. G., Petrill, S. A., Malykh, S., Malki, K., Haworth, C., Mazzocco, M. M., ... & Kovas, Y., «Number sense and mathematics: Which, when and how?», Developmental psychology, 53(10), 2017, 1924.

8 Por exemplo, Nys, J., Ventura, P., Fernandes, T., Querido, L., Leybaert, J., & Content, A., «Does math education modify the approximate number system? A comparison of schooled and unschooled adults», Trends in Neuroscience and Education, 2(1), 2013, pp. 13-22.

9 Gersten, R., & Chard, D., «Number sense: Rethinking arithmetic instruction for students with mathematical disabilities», The Journal of special education, 33(1), 1999, pp. 18-28.

10 Kalchman, M., Moss, J., & Case, R., «Psychological models for the development of mathematical understanding: Rational numbers and functions», em Cognition and instruction: Twenty-five years of progress, Nova Iorque, Psychology Press, 2001, pp. 1-38.

Geary, D. C., & Vanmarle, K., «Young children’s core symbolic and nonsymbolic quantitative knowledge in the prediction of later mathematics achievement», Developmental Psychology, 52(12), 2016, 2130.

Khanum, S., Hanif, R., Spelke, E. S., Berteletti, I., & Hyde, D. C., «Effects of non-symbolic approximate number practice on symbolic numerical abilities in Pakistani children», PLoS One, 11(10), 2016.

AUTORES

Luís Querido é psicólogo, doutorado em Psicologia Cognitiva e licenciado (pré-Bolonha) pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FPUL), especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, com especialidade avançada em Neuropsicologia, pela Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Psicólogo Clínico/Neuropsicólogo no Instituto de Psicologia das Relações Humanas, e no Serviço à Comunidade da FPUL nas Unidades de Intervenção de Neuropsicologia Clínica Cognitiva (NCC) das Dificuldades Específicas da Aprendizagem e NCC, do Envelhecimento e das Demências, e em clínica privada, desde 2000.

Colaborou e colabora em vários projetos de investigação, entre eles:

  • Estudo Psicolinguístico Longitudinal no âmbito do Plano Nacional de Leitura intitulado «Estabelecimento de níveis de referência do desenvolvimento da leitura e da escrita do 1.º ao 6.º ano de escolaridade», investigador responsável pela secção de estudo «Escrita e Conhecimento Ortográfico», de 2008 a 2010;
  • «Influência da consciência morfológica e do vocabulário nas habilidades de leitura e de escrita em estudantes universitários». FPUL (2016-presente).
  • Estudos de adaptação e validação do Coin in Hand - Extended Version, versão revista do Coin in Hand Test (Kapur, 1994), numa amostra portuguesa. Instituições intervenientes: FPUL, Universidade de Granada, Universidade de Harvard (2017-presente).

 Os seus trabalhos de investigação inserem-se no âmbito da Psicologia Cognitiva da Leitura, da Escrita e da Matemática.

Sandra Fernandes é Professora Auxiliar da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FPUL), onde tem vindo a lecionar, desde 2001, unidades curriculares no âmbito das Ciências Cognitivas, entre elas, Perceção, Atenção e Memória, Perturbações Específicas do desenvolvimento Cognitivo e Intervenções Psicoeducacionais. Psicóloga Clínica e da Saúde, com especialidade avançada em Neuropsicologia, pela Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Doutorada em Psicologia Cognitiva pela FPUL, com tese intitulada «Aprendizagem da Leitura no Português Europeu: Relações entre Fluência na Leitura Oral, Vocabulário e Compreensão em Leitura». Coordenadora responsável pelas Unidades de Intervenção de Neuropsicologia Clínica Cognitiva (NCC) das Dificuldades Específicas da Aprendizagem e NCC do Envelhecimento e das Demências do Serviço à Comunidade da FPUL. Editora da Revista Iberoamericana de Diagnóstico y Evaluación - e Avaliação Psicológica.
 
Os seus interesses de investigação centram-se nos Processos Cognitivos envolvidos no desenvolvimento da Leitura (e compreensão em leitura) e da Escrita.

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