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Basta saber ler um texto para se perceber totalmente o seu significado? A experiência diz-nos que não. A ciência confirma. Um estudo muito recente mostra que não basta conhecer as palavras, há processos no cérebro que contribuem para a capacidade de focar e manter as informações e que podem ter influência.

Ler e compreender um texto é um dos mais importantes objetivos dos primeiros anos de escolaridade. Já muito se investigou sobre a aprendizagem da leitura, mas ainda hoje se discutem as capacidades envolvidas no processo de compreensão de um texto. Atualmente, reconhece-se que um bom leitor não está limitado à boa capacidade de descodificar os símbolos escritos, embora esta seja absolutamente determinante na aprendizagem inicial da leitura. O contributo das funções executivas na variação individual da compreensão da leitura tem vindo a ganhar consistência neste debate e surge reforçado num estudo recente.

O que leva um aluno a não compreender o que lê? 

Quando o aluno não retira com sucesso a informação de um texto pode ser por:

  1. desconhecer o significado de algumas palavras;
  2. enganar-se e não se aperceber que não compreende o texto;
  3. não fazer inferências.

A importância dos dois primeiros motivos é fácil de avaliar, já a importância das inferências pode ser menos óbvia. No entanto, parte do problema pode mesmo estar relacionado com a quantidade de inferências necessárias durante a leitura. Vejamos o seguinte exemplo1:

O João estava ocupado com o balde e a pá. O castelo de areia estava quase concluído. Então, uma enorme onda entrou pela costa. Ao ver que o dia de trabalho tinha sido arruinado, o João começou a chorar.

Inferência: o João estava a construir um castelo de areia.
Conhecimento prévio necessário: um balde e uma pá são usados para fazer construções na areia da praia.
Inferência: o castelo de areia foi desfeito pela onda.
Conhecimento prévio necessário: a subida das marés e as ondas na praia destroem as esculturas de areia.

Para perceber as passagens de um texto, mesmo as curtas, como neste exemplo, é preciso que vários componentes sejam integrados naquilo que acaba por ser uma interação dinâmica entre o leitor e o texto. A compreensão da leitura é assim um processo complexo que requer um conjunto de capacidades cognitivas, pois o trabalho do leitor envolve extração e construção simultânea de significado.

Ainda que para extrair o significado seja preciso, antes de tudo, ler com razoável fluência, e depois, naturalmente, capacidades linguísticas, tais como o domínio da prosódia2 e o conhecimento do vocabulário, assim como conhecimentos prévios sobre o tópico em análise3, os últimos dados empíricos destacam ainda o papel das funções executivas. Tratando-se de capacidades cognitivas de domínio geral, estas funções – ao contrário da descodificação – não são específicas da leitura. Porém, vários estudos sugerem que as dificuldades em integrar várias informações ou ideias num todo coerente podem também estar ligadas a dificuldades de funcionamento executivo. Este funcionamento desempenha um papel na direção dos recursos cognitivos durante a leitura, na medida em que orienta não só a atenção como a capacidade para manter as informações e manipulá-las até à execução da tarefa, ou seja, extrair significado do texto lido4. Na explicação neurobiológica, algumas das regiões cerebrais requisitadas neste processo parecem ser multifuncionais, ou seja, a compreensão da leitura incorpora tanto as regiões conhecidas como específicas da leitura, como regiões designadas de domínio geral, onde as funções executivas estão incluídas5.

O contributo (in)direto das funções executivas na compreensão da leitura

A discussão sobre a forma como as funções executivas podem facilitar a coordenação das capacidades envolvidas na leitura tem aumentado nos últimos anos6. Um estudo publicado recentemente pela British Psychological Society7, vem reforçar o contributo que as três componentes das funções executivas (a capacidade de inibição, memória de trabalho e planeamento) podem ter, direta ou indiretamente, na compreensão da leitura

Esta investigação analisou crianças holandesas em dois momentos (quando frequentavam o 4.º ano de escolaridade e passado um ano) e encontrou uma relação significativa direta entre a memória de trabalho e a compreensão de leitura, e uma relação indireta, via a descodificação, sublinhando que a memória de trabalho é necessária na descodificação para ligar eficazmente os grafemas (símbolos de escrita) aos fonemas (unidades de som) correspondentes.

Já os resultados para as outras duas componentes das funções executivas (o controlo inibitório e o planeamento) não são tão claros. Por controlo inibitório entende-se a capacidade de controlar os processos cognitivos, comportamento e emoções para contrariar uma resposta precipitada e executar uma ação mais apropriada8.  Ainda que também se tenha verificado uma relação direta com a compreensão da leitura, ficou por esclarecer a natureza específica da contribuição da inibição (podendo diferentes tipos de inibição contribuir para diferentes aspetos da compreensão de leitura) e do planeamento, nomeadamente, o peso da capacidade de monitorizar o próprio raciocínio. 

A atual discussão científica revela que são precisos mais dados sobre estas relações, mas, ainda que seja necessário formar primeiro uma base sólida na descodificação das palavras, compreender o que se lê não envolve unicamente o conhecimento da língua. Em suma, ajudar as crianças desde cedo a trabalhar o seu foco de atenção, e a resistir ao primeiro impulso de distração, é também essencial para a compreensão da leitura.

Referências

1 Cain, K., «Reading Comprehension Development and Difficulties: An Overview», Perspectives on Language and Literacy, 42 (2), 2016, pp. 9-16.

2 Lopes, J., Silva, M. M., Moniz, A. V., Spear-Swerling, L., & Zibulski, J., «Prosody Growth and Reading Comprehension: A Longitudinal Study from 2nd Through the End of 3rd Grade», Journal of Psychodidactics, 20(1), 2015, pp. 5-23.

3 Oakhill, J. & Cain, K., «Supporting reading comprehension development: From research to practice», Perspectives on Language and Literacy, 42 (2), 2016, pp. 32-39.

4 Cirino, P. T., Miciak, J., Ahmed, Y., Barnes, M. A., Taylor, W. P., & Gerst, E. H., «Executive function: association with multiple reading skills», Reading and Writing, 32, 2018, pp. 1819-1846.

5 Hudson, N., Scheff, J., Tarsha, M., & Cutting, L. E., «Reading Comprehension and Executive Functions: Neurobiological Findings», Perspectives on Language and Literacy, 42 (2), 2016, pp. 23-29.

6 Haft, S.,  Caballero, J., Tanaka, H.,  Zekelman, L., Cutting, L., Uchikoshi, Y., & Hoeft, F., «Direct and Indirect Contributions of Executive Function to Word Decoding and Reading Comprehension in Kindergarten», Learning and Individual Differences, (76), 2019, pp. 1-10.

7 Nouwens, S., Groen, M. A., Kleemans, T., & Verhoeven, L., «How executive functions contribute to reading comprehension», British Journal of Educational Psychology, 2020.

8 Diamond, A., «Executive Functions», Annual Review of Psychology, 64(1), 2013, pp. 135-168.

AUTOR

Joana Rato é psicóloga da Educação desde 2003 e doutorada em Ciências da Saúde (na especialidade de Neuropsicologia) pelo Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa (UCP) desde 2014. Actualmente trabalha no Centro de Investigação Interdisciplinar em Saúde (CIIS) da UCP e desenvolve o projecto Mente, Cérebro e Educação com a colaboração de professores de várias escolas. Em 2013, através do Alumni Award da James S. McDonnell Foundation, participou na 3rd Latin-American School for Educational, Cognitive and Neural Sciences e, em 2015, recebeu o Prémio de Mérito da Fundação D. Pedro IV. Os seus interesses de investigação passam pela Neuropsicologia aplicada à Educação com destaque para a avaliação neuropsicológica de crianças e adolescentes. É co-autora do livro “Quando o cérebro do seu filho vai à escola”.

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