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Poderá o suporte digital afectar a compreensão da leitura? Ao que tudo indica, a resposta a esta pergunta é «sim».

De acordo com uma meta-análise de 18 anos de investigação neste âmbito, abrangendo 171 055 alunos, a compreensão de textos impressos é superior à compreensão de textos equivalentes em suporte digital. Esta diferença verifica-se em todos os níveis de escolaridade (do 1.º ciclo ao ensino superior pós-graduado) e acentua-se ao longo do tempo. Tendo em conta que o suporte digital prejudica a compreensão da leitura, mas que o seu uso é cada vez mais indispensável, os autores recomendam a aplicação do conhecimento científico na criação de ferramentas pedagógicas que favoreçam a compreensão da leitura em meios digitais, bem como a formação dos alunos para uma utilização crítica destes meios.

Porque ainda é cedo para descartar os livros impressos

Grande parte da leitura que fazemos hoje em dia é através de um ecrã. Mas pode a compreensão do que lemos ser influenciada pelo tipo de suporte escrito? Uma metanálise da investigação internacional, publicada entre 2000 e 2017, e que abrangeu 171 055 alunos de todos os níveis de escolaridade (do 1.º ciclo ao ensino superior pós-graduado), prova que sim. 

Nos últimos anos, esta questão tornou-se premente, tendo em conta a transição gradual da leitura em papel para a leitura em dispositivos digitais (como computadores, tablets e telemóveis), seja para uso individual, seja em contexto de sala de aula. Contudo, a investigação da compreensão da leitura em meio digital é ainda escassa e tem produzido resultados aparentemente inconsistentes. Para tentar sistematizar o conhecimento existente, um grupo de investigadores* analisou 18 anos de publicação científica neste âmbito, onde se comparou a compreensão da leitura de textos impressos com a compreensão de textos equivalentes em suporte digital.

Globalmente, a investigação revela que a compreensão de textos impressos é significativamente superior à compreensão em formato digital. Esta vantagem verifica-se em textos informativos (categoria que inclui os textos expositivos, descritivos e informativos) e em textos mistos (com características informativas e narrativas). Além disso, a maior compreensão de textos impressos verifica-se independentemente de factores como: a faixa etária (e nível de escolaridade) dos alunos, a extensão dos textos, o tipo de compreensão avaliado (textual, inferencial ou ambos), a possibilidade de revisão do texto para responder a questões, o tamanho das amostras investigadas, o tipo de teste utilizado (testes oficiais/estandardizados ou criados para efeitos de investigação), ou ainda o meio de avaliação da compreensão (digital vs. papel, incluindo a avaliação da congruência entre o meio de leitura e o meio de resposta às tarefas de compreensão).

Um olhar mais atento sobre os resultados permitiu identificar os seguintes efeitos e implicações:

1. Nem sempre o tempo é o melhor remédio (efeitos da exposição aos meios digitais)

Ao longo do tempo (entre 2000 e 2017), a investigação apontou para um agravamento da desvantagem da leitura em ambiente digital face aos textos impressos. Este dado sugere que a simples exposição (cada vez maior e mais precoce) aos meios tecnológicos não promove, por si só, o desenvolvimento das competências necessárias para uma leitura eficiente em meio digital (como, por exemplo, competências de regulação da atenção ou de análise crítica). Pelo contrário, o prejuízo da compreensão em meio digital é transversal a todas as faixas etárias, e uma maior experiência com meios digitais associa-se a um maior prejuízo na compreensão da leitura.

2. A pressa e a superficialidade são inimigas da perfeição (estratégias de leitura em ambientes digitais)

A desvantagem da compreensão em meio digital surgiu associada a uma abordagem superficial da informação. Esta abordagem acentua-se em condições que precipitam a velocidade de leitura, conforme demonstrado pelos estudos que estipularam um tempo de leitura limitado. Nestas condições, verificou-se um agravamento da compreensão em meio digital comparativamente à compreensão para o mesmo tempo de leitura em papel. Estes dados são coerentes com a «Hipótese da Superficialidade» (a) , segundo a qual as interacções rápidas e os reforços imediatos, que caracterizam os ambientes digitais, prejudicam a capacidade individual de focalização da atenção e, consequentemente, o desempenho de tarefas cognitivamente exigentes, como a compreensão da leitura. Além disso, a investigação aponta para um viés de autoconfiança na leitura superficial, caracterizado pela tendência dos leitores para sobreestimar a compreensão do que lêem em meio digital comparativamente à compreensão que estimam para a leitura em papel. A constatação destes efeitos e do respectivo agravamento no tempo tem levado alguns autores(b)  a recomendar precaução na introdução da leitura digital em sala de aula. No entanto, o conhecimento dos factores que prejudicam a compreensão da leitura em meio digital começa simultaneamente a contribuir para a investigação e desenvolvimento de estratégias que permitam superar as limitações deste meio. 

3. Ainda há boas razões para ler o jornal em papel (efeito dos meios digitais em diferentes tipos de texto)

A leitura em papel apresentou uma clara vantagem para a compreensão de textos informativos e mistos. Este resultado verificou-se de forma consistente, independentemente da extensão dos textos ou da metodologia de investigação adoptada. Apenas a compreensão de textos narrativos não variou em função do suporte de leitura.
Para a explicação deste resultado são avançadas duas hipóteses:

  1. a necessidade de aprofundamento da investigação com textos narrativos, dado o número residual de estudos neste âmbito;
  2. a menor exigência dos textos narrativos, face aos textos informativos, em aspectos como a estrutura, a complexidade do vocabulário e a familiaridade com os temas. Uma menor exigência do texto minimiza as desvantagens da leitura em suporte digital, o que, a verificar-se, corrobora a «Hipótese da Superficialidade».

4. Mouse, scrolling e outros suspeitos (possíveis efeitos adicionais)

Por último, os autores destacam um conjunto de efeitos dos meios digitais que merecem aprofundamento científico, nomeadamente:

  1. a influência do tipo de aparelho utilizado na leitura (computador, tablet ou telefone);
  2. os efeitos do scrolling, dado que a investigação sugere que este aspecto pode dificultar a orientação do leitor no texto e constituir uma sobrecarga cognitiva que prejudica a compreensão;
  3. a avaliação do impacto de aspectos como a utilização de acessórios (ex., o rato), a presença de hiperligações no texto, ou o efeito da navegação entre páginas.

Melhorar a leitura no digital

A investigação acumulada revela a superioridade da compreensão da leitura em papel face à leitura em suporte digital. No entanto, dada a disseminação e utilidade das tecnologias em contexto educativo, não será realista recomendar que se evite o seu uso para a leitura. Alguns estudos(c) sugerem que a compreensão da leitura em meio digital pode beneficiar de estratégias que promovam uma abordagem profunda da informação, como é o caso da sumarização dos textos ou da apresentação de instruções que salientem a importância das tarefas. Face aos resultados da investigação disponível, os autores recomendam que se criem práticas e ferramentas pedagógicas cientificamente informadas que melhorem a compreensão da leitura em ambientes digitais e promovam as capacidades de utilização crítica das tecnologias por parte dos alunos.

 

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

Referências

Delgado, P., Vargas, C., Ackerman, R., e Salmerón, L., «Don’t throw away your printed books: a meta-analysis on the effects of reading media on reading comprehension», Educational Research Review, 25, 2018, pp. 23-38.

a Cf. Annisette e Lafreniere (2017).

b Cf. Duncan et al. (2015); Pfost et al. (2013).

c Cf. Lauterman e Ackerman (2014); Sidi et al. (2017).

AUTOR

Célia Oliveira é Doutorada em Psicologia Experimental e Ciências Cognitivas pela Universidade do Minho, com uma tese sobre o papel de processos atencionais na Capacidade Memória Operatória. Pela mesma universidade, licenciou-se em Psicologia com pré-especialização em Psicologia Escolar e da Educação, e completou um Mestrado em Psicologia Clínica.

Atualmente é docente na Universidade Lusófona do Porto, onde é responsável por unidades curriculares no domínio da Cognição (Psicologia da Memória e Psicologia da Atenção) e da Psicologia da Educação (Psicologia da Educação e Psicologia Escolar). É membro do HEI-Lab - Digital Human-Environment Interaction Lab, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e integra o Grupo de Investigação em Problemas de Aprendizagem e de Comportamento, do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho. Os seus interesses e atividade de investigação contemplam os domínios da Aprendizagem, Atenção e Memória Humana.

Detém experiência continuada de prática clínica com crianças e adolescentes, e tem exercido atividades de consultoria científica em projetos de investigação, bem como consultoria técnica em contextos de atuação comunitária.

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