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É frequente dizer-se que o gosto pela leitura é essencial para criar melhores e mais ávidos leitores. Mas o que nos diz a investigação científica sobre esta questão? Será o gosto inicial responsável pela boa leitura, ou será a fluência de leitura que desenvolve o gosto pelos livros?

Ao longo dos últimos anos, a investigação científica tem corroborado a ideia que existe uma relação entre a frequência de leitura dos jovens e as suas capacidades, ou melhor dito, as suas habilidades de leitura. Em termos práticos, isto quer dizer que lê mais quem lê melhor, e que quem lê melhor lê mais.

Dois estudos muito recentes1,2 analisaram a reciprocidade entre as duas variáveis (i.e., habilidades de leitura e quantidade de leitura por prazer) e apresentaram conclusões interessantes. Ao que tudo indica, a direção desta relação poderá depender do momento do desenvolvimento da leitura das crianças e do género de leitura que estejamos a considerar. Vejamos melhor o que isto significa.

Leitores ávidos são melhores leitores

Estudos anteriores têm mostrado que os leitores ávidos são melhores leitores. Numa meta-análise que contemplou 99 estudos3 foram observadas correlações entre os precursores da habilidade de leitura e a quantidade de leitura.

A relação entre estes dois fatores torna-se mais evidente à medida que aumenta o ano de escolaridade, sendo mais ténue no início da aprendizagem e mais forte quando se atinge o patamar do ensino secundário. Além disso, têm sido descritas associações mais fortes entre a leitura por prazer e o interesse, a quantidade e as habilidades de leitura – tais como, por exemplo, a fluência e compreensão em leitura –, do que entre a leitura escolar formal e estas últimas.

Ou seja, o interesse pela leitura leva-nos a ler cada vez mais, o que, por sua vez, melhora o nosso desempenho nesta tarefa. De facto, a exposição ao material escrito é necessária para se adquirir o conhecimento ortográfico, essencial para a leitura rápida de palavras. Subsequentemente, a leitura rápida e sem esforço liberta recursos cognitivos, melhorando a compreensão. Quando deixamos de estar presos à decodificação e passamos a ser leitores fluentes, tornamo-nos capazes de nos debruçar sobre o significado daquilo que estamos a ler.

Causa e efeito

A existência de correlações entre os precursores das habilidades de leitura e a quantidade de leitura pouco nos dizem sobre a influência que cada um tem sobre o outro, ao longo do tempo. Aliás, até à data, apenas tinha sido analisado o papel preditivo dos precursores e das habilidades na quantidade de leitura, mas nunca o inverso.

Dois estudos recentes1,2 vieram agora explorar a potencial reciprocidade entre ambos os fatores, numa tentativa de demarcar o determinante causal – ou seja, de estabelecer qual das duas variáveis é promotora da outra, ao longo do desenvolvimento do leitor. O gosto inicial pela leitura é promotor de boas habilidades de leitura posteriores? Ou serão as boas habilidades de leitura iniciais que estão na origem da leitura por prazer?

A prática leva sempre à perfeição?

O primeiro destes estudos1 acompanhou 200 crianças finlandesas durante 10 anos, dos 5 aos 15 anos de idade. Foram avaliadas várias das suas habilidades de pré-leitura e de leitura. Como habilidades de pré-leitura (avaliadas aos 5 anos de idade), foram consideradas o conhecimento de letras e a consciência fonológica, ou seja, o conhecimento consciente de certas unidades e propriedades da língua. No que diz respeito às habilidades de leitura, foram testadas a fluência na leitura oral de textos (nos 1.º, 2.º, 3.º e 8.º anos de escolaridade) e a compreensão na leitura de textos (nos 2.º, 3.º e 9.º anos). Foi também avaliada a “exposição à leitura” – que os autores definiram como a quantidade de leitura prazerosa –, através de um questionário com perguntas dirigidas aos pais (e.g., quantas vezes é que o seu filho olha para / lê livros ou revistas de forma independente?). A relação entre as várias habilidades e a quantidade de leitura por prazer foi analisada recorrendo a modelos estatísticos de análise de trajetórias com intervalo temporal.

Os resultados revelaram que, nos anos iniciais, são as habilidades de leitura basilares (habilidades de pré-leitura e fluência em leitura oral) que têm um papel causal, tendo impacto na compreensão e na quantidade de leitura por prazer. Isto significa que, nesta fase de desenvolvimento, o conhecimento de letras, a consciência fonológica e os níveis iniciais de fluência em leitura das crianças são preditores fundamentais da quantidade de leitura prazerosa futura e da subsequente compreensão em leitura.

A fluência em leitura inicial permite prever não só a fluência em leitura posterior, mas também a subsequente compreensão em leitura e a quantidade de leitura posterior. Deste modo, as crianças com boas habilidades de leitura basilares poderão entrar numa espiral ascendente, enquanto que as crianças que possuam um défice nas habilidades básicas de leitura poderão entrar numa espiral descendente.4 Estamos, uma vez mais, perante o conhecido efeito Mateus. Para contrariar este fenómeno, será importante uma intervenção atempada nos leitores em dificuldade, tão cedo quanto possível, para melhorar as habilidades de leitura basilares (como a fluência) e ajudar a desenvolver hábitos de leitura positivos (ler por prazer).

Contudo, a partir do 3.º ano de escolaridade, verificou-se uma alteração na relação entre as habilidades de leitura e a quantidade de leitura por prazer. Esta última revelou-se, ela própria, um fator preditor do crescimento subsequente das habilidades de leitura, em particular da compreensão em leitura.

Este é o momento em que as crianças já deverão ter atingido essencialmente a automaticidade e, por isso, a independência na leitura. Assiste-se a uma viragem de aprender a ler para ler para aprender. Nesta altura, as crianças estão prontas para escolher o material que querem ler, de acordo com os seus gostos e interesses, lendo pelo prazer da leitura. Esta motivação levará a diferenças entre cada indivíduo, no que diz respeito à frequência e complexidade de leitura. Como referem os autores do estudo, a título de exemplo, “ler um livro da coleção do Harry Potter pode fornecer mais de 250 mil palavras de prática de leitura e melhorar, simultaneamente, o vocabulário e a compreensão de informação contextual.”1

Este estudo recorreu aos resultados do PISA (de 2010 e 2013) para avaliar a compreensão em leitura aos 15 anos, o último ano de avaliação. E todas as medidas avaliadas em momento anterior, a partir do 3.º ano, previram a compreensão em leitura aos 15 anos.

Uma vez que a quantidade de leitura por prazer – sobretudo a partir do 3.º ano – influencia positivamente as habilidades posteriores de leitura, os pais e os professores assumem, aqui, um papel fundamental. Cabe-lhes proporcionar às crianças materiais de leitura variados que se ajustem aos seus interesses e também monitorizar as leituras dos jovens, fornecendo-lhes feedback.

Os melhores leitores leem mais ficção

O segundo dos referidos estudos2 explorou o assunto de uma perspetiva diferente, testando o impacto de diferentes géneros de leitura na relação entre a leitura por prazer e as habilidades de leitura, de forma longitudinal. Foram acompanhados 2 525 estudantes, também finlandeses, dos 7 aos 16 anos de idade.

Tem sido sugerido que o género de leitura pode ser um aspeto relevante nesta relação. Em particular, a leitura de ficção parece estar mais fortemente correlacionada com a compreensão em leitura e com boas habilidades de leitura em geral1 do que outros géneros – talvez por estar mais associada à motivação intrínseca.2 A ficção contrasta com a leitura de revistas e banda desenhada, considerada leve, que emerge sobretudo por motivos sociais, tais como a partilha com os pares e a obtenção de reconhecimento. A estes géneros de leitura, acresce ainda a leitura digital, onde se incluem a leitura de e-mails ou mensagens instantâneas, que vieram alterar os hábitos de leitura das crianças e adolescentes.

No que diz respeito simplesmente à relação entre a leitura por prazer, em geral, e as habilidades de leitura, os resultados deste segundo estudo são muito semelhantes aos anteriormente descritos.

A grande revelação desta investigação é que nem toda a leitura por prazer é promotora de uma melhor compreensão. Apenas a leitura de livros, ou a leitura de ficção, revela uma influência significativa na compreensão – ao contrário da leitura mais leve, de revistas e banda desenhada.

Verificou-se ainda que a leitura de textos digitais num ano de escolaridade equivalente ao final do 2.º ciclo no ensino português teve um efeito negativo significativo na compreensão em leitura posterior. Estes dados sugerem que uma maior quantidade de leitura digital faz antever uma pior compreensão em leitura subsequente.

De facto, estudos anteriores1 já tinham observado uma correlação negativa entre a quantidade de tempo despendido na leitura de informação digital (e-mail, blogs, fóruns) e a compreensão em leitura de material impresso. Além de que, como a ciência também já tinha sugerido,2 a leitura proficiente de textos impressos é um forte facilitador da leitura digital competente, mas não o contrário.

Conclusões e implicações pedagógicas

Em suma, os dados destes estudos permitem-nos tirar conclusões com importantes implicações pedagógicas:

  1. A quantidade de leitura por prazer e as habilidades de leitura influenciam-se reciprocamente ao longo do desenvolvimento; embora, no início, as habilidades de leitura tenham uma influência mais forte na leitura prazerosa;
  2. Dominar as habilidades de leitura com automaticidade, sem esforço, parece fomentar o desenvolvimento da compreensão em leitura e hábitos de leitura duradouros;
  3. A leitura por prazer, em anos iniciais, promove capacidades essenciais para o desenvolvimento da compreensão em leitura – tais como o vocabulário, a sintaxe, ou o conhecimento em geral;
  4. A intervenção atempada nos alunos com défices de habilidades de pré-leitura e de leitura iniciais influenciará positivamente a quantidade de leitura independente e a compreensão de textos;
  5. Os hábitos de leitura de livros devem ser estimulados o mais precocemente possível;
  6. Quem não tem interesse por livros na pré-escola deve beneficiar de uma intervenção que contrarie esse desinteresse;
  7. A acumulação de horas de leitura, por prazer, melhora a leitura das crianças;
  8. Os estudantes devem privilegiar a leitura de livros, em detrimento da leitura digital, de modo a promoverem uma melhor compreensão em leitura. 

Referências

[1.] van Bergen, E., Vasalampi, K., & Torppa, M. (2020). How Are Practice and Performance Related? Development of Reading From Age 5 to 15. Reading Research Quarterly. https://doi.org/10.1002/rrq.309

[2.] Torppa, M., Niemi, P., Vasalampi, K., Lerkkanen, M. K., Tolvanen, A., & Poikkeus, A. M. (2020). Leisure reading (but not any kind) and reading comprehension support each other—A longitudinal study across grades 1 and 9. Child Development, 91(3), 876-900. https://doi.org/10.1111/cdev.13241

[3.]  Mol, S. E., & Bus, A. G. (2011). To read or not to read: A meta‐analysis of print exposure from infancy to early adulthood. Psychological Bulletin, 137, 267–296. https://doi.org/10.1037/a0021890      

[4.] Stanovich, K. E. (1986). Matthew effects in reading: Some consequences of individual differences in the acquisition of literacy. Reading Research Quarterly, 21, 360–407. https://doi.org/10.1177/0022057409189001-204

[5.] Jerrim, J., & Moss, G. (2019). The link between fiction and teenagers’ reading skills: International evidence from the OECD PISA study. British Educational Research Journal, 45(1), 181-200. https://doi.org/10.1002/berj.3498

[6.] Spear-Swerling, L., Brucker, P. O., & Alfano, M. P. (2010). Relationships between sixth-graders’ reading comprehension and two different measures of print exposure. Reading and Writing, 23(1), 73-96. https://doi.org/10.1007/s11145-008-9152-8

[7.] Pfost, M., Dörfler, T., & Artelt, C. (2013). Students’ extracurricular reading behavior and the development of vocabulary and reading comprehension. Learning and Individual Differences, 26, 89–102. https://doi.org/10.1016/j.lindif.2013.04.008

[8.] Hahnel, C., Goldhammer, F., Kröhne, U., & Naumann, J. (2018). The role of reading skills in the evaluation of online information gathered from search engine environments. Computers in Human Behavior, 78, 223–234. https://doi.org/10.1016/j.chb.2017.10.004

AUTORES

Luís Querido é psicólogo, doutorado em Psicologia Cognitiva e licenciado (pré-Bolonha) pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FPUL), especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, com especialidade avançada em Neuropsicologia, pela Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Psicólogo Clínico/Neuropsicólogo no Instituto de Psicologia das Relações Humanas, e no Serviço à Comunidade da FPUL nas Unidades de Intervenção de Neuropsicologia Clínica Cognitiva (NCC) das Dificuldades Específicas da Aprendizagem e NCC, do Envelhecimento e das Demências, e em clínica privada, desde 2000.

Colaborou e colabora em vários projetos de investigação, entre eles:

  • Estudo Psicolinguístico Longitudinal no âmbito do Plano Nacional de Leitura intitulado «Estabelecimento de níveis de referência do desenvolvimento da leitura e da escrita do 1.º ao 6.º ano de escolaridade», investigador responsável pela secção de estudo «Escrita e Conhecimento Ortográfico», de 2008 a 2010;
  • «Influência da consciência morfológica e do vocabulário nas habilidades de leitura e de escrita em estudantes universitários». FPUL (2016-presente).
  • Estudos de adaptação e validação do Coin in Hand - Extended Version, versão revista do Coin in Hand Test (Kapur, 1994), numa amostra portuguesa. Instituições intervenientes: FPUL, Universidade de Granada, Universidade de Harvard (2017-presente).

 Os seus trabalhos de investigação inserem-se no âmbito da Psicologia Cognitiva da Leitura, da Escrita e da Matemática.

Sandra Fernandes é Professora Auxiliar da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FPUL), onde tem vindo a lecionar, desde 2001, unidades curriculares no âmbito das Ciências Cognitivas, entre elas, Perceção, Atenção e Memória, Perturbações Específicas do desenvolvimento Cognitivo e Intervenções Psicoeducacionais. Psicóloga Clínica e da Saúde, com especialidade avançada em Neuropsicologia, pela Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Doutorada em Psicologia Cognitiva pela FPUL, com tese intitulada «Aprendizagem da Leitura no Português Europeu: Relações entre Fluência na Leitura Oral, Vocabulário e Compreensão em Leitura». Coordenadora responsável pelas Unidades de Intervenção de Neuropsicologia Clínica Cognitiva (NCC) das Dificuldades Específicas da Aprendizagem e NCC do Envelhecimento e das Demências do Serviço à Comunidade da FPUL. Editora da Revista Iberoamericana de Diagnóstico y Evaluación - e Avaliação Psicológica.
 
Os seus interesses de investigação centram-se nos Processos Cognitivos envolvidos no desenvolvimento da Leitura (e compreensão em leitura) e da Escrita.

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